Wednesday, December 17, 2008

Da Janela

Duca está olhando a vista da janela de seu apartamento. Abraça fortemente seu travesseiro, gosta de fazer isso todas as noites. Sente uma paz de espírito sem igual quando olha, no prédio em frente, uma janela com luzes acesas. É como se pensasse “não estou sozinho”. Tenta adivinhar o que aquelas pessoas estão pensando e gosta de inventar histórias envolvendo-as. Dona Vitória, como chamou a moradora do 4º andar, perdera o marido dois anos atrás e até hoje os filhos a culpam pela morte do pai. Vê seriados de drama, procurando sempre achar alguém em uma situação pior que a sua. Passa a noite na frente da televisão. Marina, do 3º andar, está nessa noite montando delicadamente sua árvore de Natal. Cada detalhe é organizado meticulosamente. Faz isso para ocupar no coração o espaço deixado por um amor não correspondido. Gosta de comer tortas de pêssego e de ler livros os quais Duca nunca consegue descobrir quais.
Enquanto abraça fortemente seu travesseiro, o jovem também gosta de ver carros passando pela sua rua. Tão forte é sua imaginação, que tenta descobrir para que lugar os veículos se dirigem. Carlos Roberto dirige um Ford Fiesta de cor preta. É um promotor de justiça e está, nesse momento, se dirigindo para a casa de sua amante e, em casa, deixa uma mulher e quatro filhos. Como se fosse um castigo divino, o homem temseu carro e sua vida acabadas naquele segundo.
Carlos Eduardo, mais conhecido como Duca, mora em um prédio em frente ao meu. Gosta de abraçar fortemente seu travesseiro. Sente uma paz de espírito sem igual quando olha, no prédio em frente, uma janela com luzes acesas. É como se pensasse “não estou sozinho”. Quem sou eu? Gabriela, moro no 3º andar, gosto de comer tortas de pêssego e ler livros os quais ele nunca conseguiu identificar quais são. Tenho uma vizinha idosa chamada Vitória que não me deixa dormir com o barulho de sua televisão até altas horas. Já que, pelo visto, ela não irá desligar o aparelho tão cedo, acho que vou montar minha árvore de Natal.

Wednesday, December 10, 2008

Ponto Final

Ler ao som de Elephant Gun, do Beirut.


Antônio Luiz da Silveira Gonçalves tem oitenta e nove anos, três filhos e sete netos e está nesse momento sentado à frente de seu aparelho televisor quarenta e duas polegadas. Bebe cerveja e come amendoim. Troca de canal algumas vezes, até parar no canal cinqüenta e um de sua companhia de TV a cabo. São três horas da tarde de uma terça-feira, horário específico de programas antigos. Antônio tem, então, sua última crise existencial de sua existência. Dá alguns passos até seu quarto e, primeiramente, segura o retrato de sua falecida esposa, dona Rosinha, uma simpática senhora que teve sua vida dedicada à confecção de tortas. As primeiras lágrimas ganham liberdade no momento em que ele deixa o retrato sob o criado mudo. O senhor se dirige ao guarda-roupa, abre uma gaveta e pega uma pequena caixa antiga, feita de metal. Balança-a como se quisesse conferir se o que procura está mesmo ali. Sorri ao saber que sim, abre-a e começa a vasculhar: Era a caixa de recordações de sua infância. Antônio chora ao pensar que a morte se aproxima e a vida passa diante de seus olhos; desde o momento em que ganhou seu primeiro carrinho, o dia em que perdeu o mesmo em uma aposta e teve de pedir para seu pai resgatá-lo, passando pelo primeiro beijo, a primeira noite de amor, a entrada na faculdade, o dia em que conheceu Rosa Garcia Rodrigues, o ano em que perdeu o pai, o nascimento de seus três filhos e dos cinco netos. “Não fui útil em nada nesse mundo”, resmunga para si mesmo. De repente, sente a presença de algo. É a morte e ele sabe. Antônio pensa e morre sorrindo.
Vamos aos fatos:
Em 1930, Antônio Luiz da Silveira Gonçalves estava convencido a seguir a carreira de médico. Anda tranqüilamente pela Rua Dois quando, por acaso, olha em um poste a propaganda do curso de Medicina Veterinária. Naquele instante, nem o próprio Antônio conseguiu descrever a sensação de estar fazendo o certo. Conheceu Rosa Garcia na faculdade e teve um filho chamado Francisco Gonçalves Rodrigues, que depois veio a se casar com Antonieta Magalhães, cuja vontade era criar uma instituição de caridade. Os dois criaram a APV, Associação Pela Vida, responsável por achar a cura para o vírus da AIDS. Depois de muito trabalho, conseguiram a façanha desejada e muitas pessoas foram salvas pela descoberta do casal.
Por isso que Antônio Luiz da Silveira Gonçalves sorriu em seu leito de morte: Se não tivesse desistido da Medicina, não entraria no curso de Veterinária, logo, não conheceria dona Rosinha, por conseqüência, não seria pai de Francisco, que não teria conhecido a bela Antonieta, não nascendo, por tal, a APV, cujo objetivo não teria sido alcançado e milhares de pessoas ainda morreriam de AIDS no mundo.
É, seu Antônio, o essencial é invisível aos olhos.