Wednesday, March 12, 2014

Madrugada

Porque ela pensou que ele tinha pensado algo ele pensou que ela tinha pensado algo e fez uma cara estranha. Porque ele fez uma cara estranha ela pensou que ele tinha pensado algo e ficou pensando no que tinha dito para ele ficar tão sério assim de repente. Ele ficou sério de repente porque sempre fica com medo de parecer bobalhão nesses momentos, e por ela ser mais velha, pensou que não era o caso de parecer bobalhão. E aí passaram dias sem se falar.
Porque ele há dias não falava nada ela ficou pensando que tinha estragado tudo, como sempre fazia, na vida inteira, mas era assim mesmo, fazer o que, não ia mudar seu jeito assim de uma hora pra outra e talvez nem valesse a pena, ou até valesse, mas ela não estava tão disposta assim a fazer as coisas valerem a pena e andava tão ocupada que não tinha tempo pra ficar se martirizando por “ter estragado tudo, como sempre fazia, na vida inteira”. Aí resolveu ficar off-line. Aí ficou pensando que ele ia pensar que ela tinha ficado off-line pra ele não ir falar com ela. Aí pensou em ficar online de novo. Aí pensou que ele ia pensar que ela tinha ficado off-line pra ele não ir falar com ela, mas que depois desistiu.
Porque ela há dias não falava nada ele ficou pensando que havia passado dos limites nas bobagens e olha só ela acabou de compartilhar um link supercabeça, será que “supercabeça” se escreve assim ou se escreve com hífen?  Essa nova ortografia complica demais uma língua que antes era deliciosamente complicada, que absurdo. Pensou em puxar assunto falando sobre nova ortografia, mas lembrou que eles já tinham falado sobre isso, e na verdade ele pensava que os dois já tinham conversado sobre todos os assuntos do mundo, até que ela sem querer falou (diz ele que em outras palavras) que ele era meio fútil e desde então ele tem pensado cinquenta vezes antes de puxar qualquer assunto.
E já passava das 4 da manhã. Ele achava legal ela ficar online às 4 da manhã.
E aí ela ficou off-line. E ele pensou que era um cagão mesmo.
Aí passou mais um tempo.
E durante esse tempo ela postou um link com livros do Foucault.
E ele postou um vídeo besta de Friends e ficou se sentindo idiota, porque resolveu conversar com outra nesse meio tempo e essa outra achava Friends besta.
E se passou mais um tempo.
Aí ele se embebedou no aniversário de 76 anos da avó e resolveu mandar mensagem. Ela estava estudando e não entendeu nada, mas resolveu responder qualquer coisa pra não parecer grossa. Ele falou que queria que ela fosse namorada dele pra poder morder a bochecha dela sem ser preso por isso. Ela falou que provavelmente o mandaria preso mesmo que eles fossem namorados. Ele disse que então ela enxergava a possibilidade do ajuntamento. Ela disse que não foi isso que disse. Ele disse que mas, porém, todavia, entretanto ela disse. Ela quis desconversar e perguntou como estava a festa. Ele pensou que ela estava mudando de assunto porque não estava mais interessada e ficou sério o resto do aniversário inteiro. Aí chegou em casa e viu que ela estava estudando enquanto ele falava merda. Aí botou a mão na testa.
Porque ele não respondeu mais nada, ela ficou pensando que mais uma vez tinha sido insensível, mas não dá pra ficar o tempo todo pisando em ovos, tenho que dizer o que eu penso, que coisa mais chata, uma hora me irrito e nem respondo mais, que cara chato e que se ofende com umas coisas sem sentido, tenho paciência não.
E se passou mais um tempo.
E durante esse tempo ele pensou que ela tinha desistido de vez, tinha visto que na verdade ele não era tão legal quanto parecia naquelas conversas de, sei lá, três horas, e que talvez até tenha voltado para algum ex mais interessante. Isso sempre acontecia, não era novidade alguma e ele não estava surpreso. Essa era a sua sina. As mulheres o achavam interessante no início, o papo é bom, mas depois ele sempre estraga tudo. A culpa é da ex. A culpa é da família, que nunca lhe deu carinho o suficiente. Que nada, a culpa é minha mesmo.
E se encontraram na mesma festa onde, há dois anos, ele gostou do movimento dela. E ele falou pra ela que eles estavam na mesma festa onde, há dois anos, ele gostou do movimento dela. Ela riu e pediu pra ele atualizar a ordem cronológica dos fatos porque não lembrava mais, mas na verdade ela gostava de ouvir ele contando. Ele contou que viu ela primeira vez na fila de uma festa, depois em outra e só depois num show resolveu puxar assunto. Ela riu e pediu pra ele contar pra uma amiga que tinha voltado do bar. Ele contou de novo, porque também gostava de contar e porque achava que essa amiga não gostava muito dele, então também tentou engatar algumas piadinhas sem graça, mas que a amiga acabou gostando e deu tudo certo. Ele chamou uns amigos pra entrarem na roda. Os amigos dele foram embora, um estava com pneumonia e o outro desfilaria num evento militar na manhã do dia seguinte, mas ele resolveu que ficaria e ela não queria deixá-lo sozinho, então o chamou pra ficar junto no grupo. E ele ficou no grupo.
Porque ele não tinha como voltar, ela ofereceu carona. Eles moravam muito longe um do outro, então ele disse que não precisava, mas já abrindo a porta do carro.
E aí ele olhou nos olhos dela.
E aí ela não entendeu muito bem a reação dele.
E aí ele a beijou.
E aí ela quase atravessou uma preferencial aonde vinha uma van.
E ele falou que seria uma morte muito triste se eles morressem agora.
E ela falou que seria uma morte muito besta, isso sim.
E aí ele fez uma cara estranha.

Porque ele fez uma cara estranha ela pensou que ele tinha pensado algo e ficou pensando no que tinha dito para ele ficar tão sério assim de repente

Friday, March 07, 2014

Dia para lembrar as lutas

O dia 8 de março é marcado por ser o Dia Internacional da Mulher. Ao contrário daquilo que determina o senso comum graças a décadas de distorção em torno do assunto, a data representa algo muito maior do que o cafuné, a flor, o perfume ou o estojo de maquiagem recebidos por elas com o objetivo de mantê-las no lugar designado pelos homens. Também não é exatamente um momento de celebração. É uma data marcada pela lembrança. A lembrança da luta das mulheres por um status de pesadíssima leveza e simplicidade: o de igualdade. Essa inferiorização também é notada no que tange o espaço para o sexo feminino na produção cultural brasileira.
Coadjuvantes
Há cerca de 70 anos a escritora britânica Virginia Woolf publicou dois artigos, A nota feminina na literatura e Mulheres romancistas. Neles, a autora buscou debater e criticar as dificuldades que as mulheres encontravam para alcançar o sucesso com seus escritos, além de rebater afirmações à época de que a literatura feita por elas era inferior. Recente estudo da professora da Universidade de Brasília (UnB), Regina Dalcastagnè, aponta que pouca coisa mudou em nossa sociedade neste aspecto. Segundo a pesquisa, 72,7% dos romances lançados entre 1990 e 2004 no Brasil foram escritos por homens.
Outro dado da pesquisa: 62,1% das personagens consideradas importantes nas produções são do sexo masculino, contra 37,8% de personagens femininas. Através destes dados, Regina conclui que, ao contrário da forma como fomos condicionados a pensar com o passar dos séculos, a voz masculina tem, sim, um gênero, o que acabou por criar duas categorias: literatura e literatura feminina. Esse ponto de vista é acompanhado pela escritora Luisa Geisler, natural de Canoas. “A recepção ainda é um problema: existe um preconceito de que uma mulher escreve pra mulheres, de que uma mulher escreve de uma maneira específica, de que mulheres ‘falam muito de sentimentos’, enquanto homens atingem os dois gêneros.” Para a escritora pelotense Angélica Freitas a mudança tem de partir por quem lê. “Acho que no Brasil as editoras, os prêmios literários, os leitores estão apaixonados por senhores. A situação não vai mudar enquanto não decidirmos comprar mais livros de autoras brasileiras.”
Cinema feminista
O cinema é responsável pela formação da opinião pública acerca de questões sociais até então pouco debatidas. Caso do mais recente vencedor do Oscar de Melhor Filme, 12 anos de escravidão. O longa de Steve McQueen, além de importante relato da era escrava nos Estados Unidos, reacende a discussão sobre o quão extinta a escravidão realmente está.
Sendo assim, o cinema também se transforma em importante ferramenta para a propagação dos ideais de luta pelos direitos das mulheres. E são muitos os exemplos de filmes que abordam a temática feminista de forma responsável, enfática e até mesmo didática (pois tudo tem de começar cedo). Mas este espaço que teoricamente as mulheres teriam para propagação de seus ideais parece esbarrar, mais uma vez, na inferiorização. “No cinema, os lugares que as mulheres ocupam, na maioria das vezes, são os que são ‘destinados’ pra elas em outros âmbitos: ou elas trabalham com os figurinos ou são as atrizes. Papéis de direção são raramente tomados pelas mulheres”, afirma a professora do Centro de Artes da UFPel Ana Paula Penkala, que critica os papéis exercidos. “Ou elas exercem os papéis tipicamente femininos ou estão servindo, como no caso das atrizes, muitas vezes como um espelho de como a mulher é vista ainda na cultura.”
Frente feminista
A importância do cinema para propagação do debate acerca da opressão a que são submetidas as mulheres também é ressaltada por Daniele Rehling, membro da Frente Feminista Giamarê, em Pelotas. “É mais didático e facilita na luta”, afirma, lembrando de cine-debates promovidos pelo grupo para passar adiante a ideia.
A Frente Feminista Giamarê nasceu durante a articulação da Marcha das Vadias, em novembro de 2013, da necessidade de se fazer eventos como este durante o ano inteiro. Daniele conta que, para este 8 de março, serão realizadas diversas oficinas em escolas sobre a data e as mais variadas violências contra a mulher. No sábado, às 10h, haverá panfletagem convidando para uma exposição de vídeos feministas mais tarde, às 20h, na frente do Mercado Central.

*Matéria escrita para o Diário Popular