Friday, November 21, 2014

O folclore, o jazz e o acordeom

O acordeom, dá para se dizer, é dos instrumentos mais versáteis no mundo musical. Explica-se: cai como uma luva tanto na mais bela canção tradicionalista gaúcha, quanto no mais classudo dos tangos ou ainda na música cigana, atualmente melhor representada pelo gipsy punk do Gogol Bordello. Essa versatilidade possibilitou o diálogo do francês Richard Galliano com o sertão nordestino. Dos maiores acordeonistas da atualidade e responsável por aproximar o instrumento do jazz, o francês faz a abertura do Pelotas Jazz Festival hoje, às 18h, no Palco TIM Music.
A ligação está gravada: Richard Galliano au Brésil, produzido em 2008, é um disco com gosto de feijão misturado com coq au vin. Vatapá com escargot. Glauber Rocha com Godard. Romário com Zidane. Gravado na Paraíba, o álbum traz o encontro do acordeonista com grandes mestres da música nordestina - mais especialmente o forró -, como Chico César, Aleijadinho de Pombal e Dominguinhos, este destacado junto com Sivuca por Galliano quando lhe é perguntado sobre referências brasileiras no acordeom.
Todas as letras do disco foram escritas em português e se destacam Nego forró, Princesinha do choro e uma versão de Asa branca. Interpretada em parceria com Dominguinhos, esta traz aos ouvidos o mais legítimo forró pé de serra, sendo impossível não balançar a perna ou não imaginar um casal dançando aqueles passos rápidos que apenas o gênero é capaz de proporcionar.
Se misturam
Em suma, o disco dá a impressão de que Galliano está sentado em um muro, acordeom às mãos, descalço, com uma fogueira na frente. Tal simpatia para com a cultura brasileira não é mero acaso. Diz o francês que as mesmas pulsações que teve contato no sertão são encontradas no Magrebe - a região noroeste da África -, perto da França. "Eu nasci na parte latina da Europa, a bacia do mediterrâneo. Folclores se misturam."
Sobre o assunto, Galliano diz acreditar que a música, assim como a dança, pode e deve ser utilizada como mecanismo de resistência cultural de qualquer localidade. Segundo ele, neste caso a mensagem que ela passa pode ser muito mais forte e influente que um discurso político exatamente por ter mais fácil imersão em todas as camadas da sociedade. "A dança e a música podem entreter e convencer todo um povo", diz, afirmando ainda que apesar de no Brasil o forró ter resistido, agitando e fazendo vibrar multidões, na França a musette, mutação mais simples, sensual e próxima do acordeom da valsa, não foi capaz do mesmo, praticamente desaparecendo. "Acabar com as tradições do folclore é muito perigoso para a identidade de um povo, assim como sua língua e os diferentes dialetos", afirma.
Aliás: foto postada no perfil oficial de Chico César em uma rede social mostra que a parceria que resultou em Richard Galliano au Brésil não cessou a produção. No retrato o brasileiro aparece com Galliano no Estúdio Fábrica, em Recife, onde, diz, gravaram um disco em - acredite se quiser - dois dias. Tudo gravado ao mesmo tempo, inclusive a voz.
Na família
Vem de casa o contato com o acordeom: seu pai, Lucien Galliano, era professor do instrumento. Com a proximidade, foi natural encarar o pesado instrumento logo aos quatro anos, cujas aulas dividiam seu tempo com o aprendizado de harmonia, contraponto e trombone no Nice Conservatoire.
A epifania que o levou ao jazz se deu quando teve contato com a obra do trompetista Clifford Brown, de quem diz ter copiado os refrões, impressionado por seu tom e movimentação. Com o aprofundamento da pesquisa, Galliano começou a perceber pouco uso do acordeom no gênero, ao que descobriu estadunidenses especialistas nessa aproximação e acordionistas italianos como Felice Fegazza.
Nos anos seguintes, já em Paris, Galliano, ainda buscando essa junção do jazz com o acordeom, focou a carreira na composição e arranjos em um grupo fundado por ele juntamente de outros jazzistas, além de produzir trilhas sonoras para filmes.
Em 1991, após quase duas décadas, o acordenista optou por seguir o conselho de Astor Piazzolla, músico argentino que foi seu mestre amigo, e voltou às suas raízes:  tratou de dar atenção à valsa musette e aos tangos. Inspirado por pessoas como Gus Viseur (único acordeonista de jazz membro do Hot Club de France) e Tony Murena, adaptou o acordeom a um ritmo três-por-quatro, livrando o instrumento da imagem antiquada que o assombrava, levando-o para ainda mais perto do frescor do jazz. Daí nasceu o inovador disco New musette, que o fez vencedor do prêmio Django Reinhardt, da Académie du Jazz, na categoria  músico francês de 1993.

*Matéria escrita para o Diário Popular

Tuesday, November 11, 2014

Vasculhar vale a pena

São sempre os mesmos. Reclamam disto alguns visitantes da 42ª Feira do Livro de Pelotasquando percebem estar de forma onipresente nas bancas do evento grandes publicações, de maior apelo comercial - e muitas vezes vazias de conteúdo. Essa falta de variedade, porém, pode ser suprida com uma pesquisa mais profunda. Não demora muito até que livros quase esquecidos em meio a best-sellers saltam aos olhos com bom desconto.
Os exemplos transcendem estilos e públicos: tem pra todos. O primeiro é inicialmente dedicado ao público infantil, mas qualquer um se delicia com o modo e a história que Adriana Falcão escreveu em seu Luna Clara & Apolo Onze, livro que conta a distraída saga de uma menina que vive no mundo da Lua. O título, que costuma custar por volta de R$ 49,00 está representado por diversos exemplares pelo preço de R$ 10,00 na banca especial de saldos da Cia dos Livros.
Esta, aliás, deve ser vista com carinho por quem quer ler sem pagar tanto. A livraria, em contato com diversas editoras, promove na Feira do Livro de Pelotas com grandes descontos diversos títulos do mais variados gêneros. Estão ali com bons preços desde o já citado Luna Clara & Apolo Onze até livros lançados recentemente, como Cidade dos ossos, primeiro da série infanto-juvenil Os instrumentos mortais.
Saldos nos sebos
Para quem gosta do trabalho de garimpo na Feira do Livro, é quase obrigatória a passagem pelo Sebo Icária, que coloca à venda títulos que chegam a custar R$ 3,00. Dos mais variados estilos. Renan Teixeira, estudante da UFPel e oriundo do interior de Minas Gerais, afirma que costuma fazer essa procura em todas as feiras literárias que já teve contato. "Essas feiras e essas bancas em especial promovem uma maior democratização dos livros e de temas a se discutir, além de promoverem a ocupação do espaço público", diz, enquanto procura livros de filosofia e sociologia e recebe de um amigo uma valiosa dica: um exemplar de Cândido, do filósofo iluminista Voltaire.
Eric Barreto, funcionário do sebo que está trabalhando na Feira do Livro, afirma que o público que mais costuma procurar livros na banca e se surpreender com o que acha é o de pessoas mais velhas. "Tem gente que leu um livro há 20, 30 anos e não imaginava encontrar mais", diz, dando como exemplo uma senhora que foi até o local e encontrou um livro que a mãe costumava ler para ela, quando criança. "Conquista pelo lado sentimental", afirma Barreto.
Em uma rápida pesquisa pelas prateleiras da banca do sebo Icária, a reportagem do caderno Zoom encontrou pelo menos dois títulos (além do já citado Cândido, que Teixeira adquiriu e não está mais disponível) que devem ser levados para a casa. O primeiro é uma pérola do período mais fértil da crônica brasileira: é Primo Altamirando e elas, onde Stanislaw Ponte Preta conta os mais curiosos causos de um dos supostos membros da família Ponte Preta. No local o exemplar sai por R$ 5,00. O outro é um volume duplo, bonito e de capa dura do clássico dos clássicos Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes. R$ 30,00 pagam os dois.
Achados em nossa pesquisa na 42ª Feira do Livro de Pelotas (teto de R$ 15,00):
Luna Clara & Apolo Onze, de Adriana Falcão R$ 10,00
Primo Altamirando e elas, de Stanislaw Ponte PretaR$ 5,00
Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes
R$ 30,00 o volume duplo
Bob Dylan - Canções comentadas
R$ 15,00
A câmara clara, de Roland Barthes
R$ 15,00

*Matéria escrita para o Diário Popular

Wednesday, November 05, 2014

Feira debate a literatura

Está em processos de se tornar passado a época em que a Feira do Livro de Pelotas se tratava de um evento cujos objetivos eram oferecer descontos em livros caros a um público subjetivado como consumidor e servir como um aprazível passeio de final de semana na praça Coronel Pedro Osório. Cada vez se encorpa mais a feira através de oficinas e rodas de conversa que pretendem não apenas corresponder ao viés comercial da literatura, mas às discussões acerca do assunto. Na 42ª edição, o carro-chefe desta é a participação dos escritores Fabrício Corsaletti, Paula Fábrio e Paulo Sandrini, que realizam nesta quinta-feira (6) uma roda de conversa, mediada pela professora Denise Bussoletti, e de quinta (6) a domingo (9) ministram oficinas em Pelotas.
Em qualquer papel
Corsaletti será o primeiro. Sua oficina, que já tem inscrições esgotadas, tem início nesta quinta-feira (6) na Bibliotheca Pública Pelotense (BPP). O assunto será a crônica, campo em que se sente à vontade, tendo em vista o recente lançamento de Ela me dá capim e eu zurro e sua participação desde 2010 como colunista do jornal Folha de São Paulo. "A partir de análises de crônicas vou discutir características dos autores e do gênero", explica.
Sobre escrever para livros e para jornais, Corsaletti afirma não ver quase nenhuma diferença. Tenta, independentemente do meio, fazê-lo da melhor forma possível e escrevera nos periódicos com o intuito também de, no futuro, reunir essa produção em um livro. Destaca, porém, a participação mais direta do leitor nos escritos feitos para esses. "O leitor dos jornais é real, reclama, elogia", afirma.
Corsaletti, que iniciou suas publicações na poesia (Movediço, de 2001, O sobrevivente, em 2003 e uma reunião em 2007 dos dois acrescidos de Estudos para o seu corpo e História das demolições), destaca também como "ótimos" os eventos literários como o que a Feira do Livro de Pelotas caminha para se tornar: estabelecendo o diálogo e o debate. "Ajudam a aproximar livro e leitor, que é o que importa", comenta.
Estreia com experiência
Para Paula Fábrio, esta transformação nos eventos literários brasileiros os fez contemplar os dois lados: tanto os descontos, importantes para o acesso da população à literatura, e a discussão acerca das letras. "Não adianta promover o preço se não há interesse sobre o livro. Creio que a discussão sobre os livros será cada vez mais crucial, a fim de resgatar os déficits educacionais que vimos acumulando nos últimos anos. Caso isso não ocorra, de nada adiantará oferecer livros com preços reduzidos", diz, destacando como expansão dessa demanda pela proximidade leitor-autor as oficinas ministradas por escritores e a interatividade proporcionada pelas redes sociais.
Paula, 44, estreou na literatura em 2013, com Desnorteio. Da melhor forma: a história de três irmãos que viraram mendigos ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria estreante com mais de quarenta anos. Ela é, porém, exceção quando se trata de premiações, tendo em vista um número cada vez menor de mulheres contempladas e participantes em eventos literários.
Para pontuar a discussão, ela acrescenta um dado: neste ano houve um evento - a autora não cita qual pois supõe ser este um sistema automático - que contou com 35 escritores, sendo apenas uma mulher. "Suspeito que há uma herança nefasta do machismo. E isso, acredito, não é algo simples e direto, 'não contemplaremos mulheres neste e naquele prêmio', não é isto, é algo mais profundo, subliminar e às vezes até inconsciente", comenta. E explica: pouco tempo atrás, um colega lhe contou que sua editora recebia cinco vezes menos originais de mulheres que homens. Uma escritora mais radical (talvez mais calejada) sentenciou: "é que nos matam no nascedouro." Segundo Paula, esse tratamento diferenciado dado a homens e mulheres na literatura é herança de uma cultura machista persistente.
Apostas reduzidas
Paulo Santini, que ministrará O "eu" é um "outro", crê que a promoção de oficinas e rodas de conversa que debatam as letras em eventos literários fazem parte de uma espécie de resistência, por não segregarem autores que não estão no eixo de grandes editoras. "Isso promove ao mesmo tempo uma variante de vozes literárias diferentes, concordantes ou divergentes tornando o debate acerca das letras bem mais interessante", comenta, afirmando que esta pluralidade nem sempre é promovida pelo mercado editorial. "O ideal de uma feira, creio eu, é privilegiar o acesso às pessoas a escritores e obras que, talvez, sem a feira, elas não chegariam a conhecer", completa.
Sobre o momento para escritores, ele acompanha a colega em certo pessimismo. Cita a primeira década dos anos 2000, quando, afirma, havia menos temor por parte das editoras em publicar autores menos conhecidos, sem preocupação com o mercado. "E sejamos sinceros, mercado pra quem? O mercado não é grande para a literatura. Por isso, Atualmente, as apostas são mais reduzidas. O tiro precisa ser mais certeiro", critica o autor de Vai ter que engolir, O estranho hábito de dormir em pé e Código d'incríveis objetos & histórias de lebensraum, todos de contos, lamentando ainda a baixa receptividade do gênero nas editoras.

*Matéria escrita para o Diário Popular