- O que você vai querer comer?
- Você está perguntando, no nosso
jantar de aniversário de vinte e sete anos de casados, o que eu vou querer
comer?
- Sim, eu estou perguntando, no
nosso jantar de aniversário de vinte e sete anos de casados, o que você vai
querer comer porque em vinte e sete anos de casados, somados a mais três de
namoro e mais um e meio em que eu te observava por aí você sempre iniciou um
jantar perguntando “o que eu vou querer?”.
- Então nesse tempo todo você já
deveria ter percebido que eu pergunto
para mim o que eu vou querer comer.
- Você e esse seu feminismo.
- Você e essa sua ideia errada de
feminismo.
- A gente vai passar o nosso
jantar de aniversário de vinte e sete anos de casados brigando? Tudo bem que
isso aconteceu no jantar de vinte e três e depois o amor de um pelo outro
cresceu como não crescia há quinze, mas agora, quatro anos depois, nossos
filhos já estão formados na faculdade. Não temos mais esse gás todo para brigar
e fazer as pazes em questão de horas.
- Concordo.
- Por falar em filhos, você tem
falado com a Mariana? Assim, depois da demissão.
- Não. Eu liguei várias vezes,
mas nada. Falei com a menina que divide o apartamento e ela disse que a Mariana
não forma uma frase de cinco palavras há duas semanas.
- Bom, normal. Quando a Mariana
fala pouco, ou não fala, é porque já passou de fase no sofrimento. O problema
sempre foi quando ela ficava falando sobre o assunto por três horas
consecutivas.
- Você sempre entendeu a Mariana
muito melhor do que eu. A minha relação com ela sempre foi tão... Distante, não
sei.
- Não é uma relação distante. Com
certeza é uma relação diferente da que eu tenho com ela, mas isso vai de pessoa
pra pessoa. Você pode ver isso como ela precisando falar mais para se comunicar
comigo e com você ser tudo mais simples.
- Mais superficial...
- Talvez. Mas essa ideia de
“superficial” e “profundo” é tão subjetiva. O fato de você estar preocupada com
a forma com que ela está levando essa fase difícil já não significa que a
relação de vocês duas é profunda? Vai ver é só uma questão de jeito. O seu é de
analisar as coisas com distanciamento, para formar uma opinião mais sensata
sobre as coisas, enquanto o meu é mais próximo.
- Então eu sou mais distante
mesmo.
- Você não é mais distante. É
como se eu fosse pai e você anjo da guarda.
- Mas eu não quero ser anjo da
guarda, eu quero ser mãe. Às vezes eu acho que a nossa filha me vê mais como
uma amiga distante do que como uma mãe!
- Eu acho que você está viajando
na maionese. É claro que ela vê você como mãe dela. Você só é um tipo
diferente, mas diferente do que você mesma espera ser, e não do que ela espera
que você seja. Então, o que você vai querer comer?
- Eu não sou “um tipo diferente”
de mãe. O que é “um tipo comum” de mãe? Ficar o dia todo em casa fazendo comida
e passando roupa? Se for, eu realmente prefiro ser um tipo diferente.
- E tenho certeza de que a
Mariana tem o maior orgulho de você ser do jeito que você é. Eu acho que vou
pedir esse salmão.
- Olha aqui...
- Meu bem, hoje é o nosso
aniversário de vinte e sete anos de casados. A nossa filha já está bem crescida
e superando muito bem um problema. Vamos tentar ser namoradinhos só por hoje?
- A gente nunca foi muito
“namoradinhos”, né? Acho que por a gente ser muito amigo, não sei. Mas a gente
nunca foi um casal desses que têm apelidos e coisa e tal.
- Não, mas quando estamos só os
dois a gente é bem namoradinho.
- :) Será que nós estaríamos aqui
os dois, trinta e sete anos de casados, somados a mais três de namoro e mais um
e meio em que você me observava por aí, se fôssemos “namoradinhos”?
- Eu acho que não, porque a gente
estaria sendo pessoas que não somos. A gente está aqui, trinta e sete anos de
casados, somados a mais três de namoro e mais um e meio em que eu te observava
por aí porque se encontrou. E não por aquela história de “alma gêmea”, que eu
acho uma besteira e você também. A gente se encontrou, viu que ali na frente
estava uma pessoa que dava pra passar a vida toda e foi lutando pra fazer dar
certo.
- Você sempre lutou mais do que
eu...
- Mais uma vez é viagem sua nessa
maionese doida que é a sua cabeça. Você só foi sempre mais calada, mais
introspectiva. A sua luta sempre foi com você mesma.
- Eu sempre tive medo que a gente
se separasse em algum momento. Não separar no sentido de divórcio, porque isso
é coisa que acontece. Separar no sentido de se desligar.
- Eu também, embora sempre
dissesse ter uma segurança imensa do que a gente tinha. Mas agora estamos aqui
os dois nesse diálogo escrito por você.
- Mas que poderia muito bem estar
sendo escrito por você. Eu acho que vou escrever que você me beija agora.
- Escreve antes aí que o meu
salmão chegou, porque a fome está quase maior do que a nossa história.