Tuesday, March 24, 2015

Heroes

Aconteceu mesmo – essas coisas acontecem. João era garoto ainda, os pais saiam para trabalhar e o deixavam em casa, tinham dinheiro para pagar babá e achavam ainda muito cedo para que ele fosse para a escolinha, ao passo que ficava a manhã toda a assistir na tevê os programas infantis da Eliana e foi aí que tudo começou. Não se sabe muito bem como – ninguém até hoje viu o exato momento em que o fenômeno acontece – não se sabe muito bem como, durante a música dos dedinhos, não se sabe bem como, João transformou-se em um belo polegar, ao que os pais imediatamente desesperaram-se, tentaram em vão processar a apresentadora infantil e seu ajudante Chiquinho, mas o juíz achou um absurdo, como que um menino de uma hora pra outra se transformaria assim em um polegar, minha senhora, e indicou um psiquiatra para a mãe de João se tratar.
O meninopolegar por muito tempo continuou dessa forma, aproximadamente cinco anos dessa forma, até que trocou de canal e passou a ver a TV Globinho, e a coisa ficou muito pior, porque João gostava de assistir aos desenhos e no espaço de uma hora se transformava em diferentes personagens, quando passava Pokémon lá estava ele a parecer um Charmander, e depois passava Digimon e ele ficava a cara de um Agumon, na sequência se transformando em um Trunks do futuro – era o momento em que se sentia melhor -, depois mudando para uma versão brazuca de Sakura Card Captors e enfim se transformando na Angélica quando em Bambuluá, e isso acontecia diariamente  sempre das 10 às 11 da manhã e João vivia essa eterna metamorfose, não sabia mais quem era, ficava triste sempre que deixava de ser Trunks do futuro, mas também era fã de Digimon e não queria deixar de parecer Agumon, ao que finalmente decidiu, os pais já desistindo após aproximadamente cinquenta e dois médicos desistirem de descobrir que diabos tem o menino que se transforma de acordo com o que vê na tevê, finalmente decidiu que aguentaria as transformações até a próxima exibição de Dragon Ball Z, quando se transformaria em Trunks do futuro e assim pra sempre seria, os cabelos roxos, a espada nas costas, o colete azul, mas tal foi a surpresa quando, no meio do episódio, ele transformado em Agomon, viu surgir uma testa lustrosa, uma roupa laranja, uma falta de poderes, de espada, de cabelo roxo e de colete azul, até que percebeu que se transforara em Kuririn e aí foi uma tristeza só, quem nesse mundo gostaria de ser Kuririn, bradava ele pela casa, e a mãe a correr atrás dele a dizer que o amaria assim, mesmo achando que não conseguiria amar aquela criatura que parecia ao mesmo tempo um bebê e um adulto, aí João chegou na escola e toda a recepção que havia imaginado por parte dos colegas ao verem o menino virado em Trunks do futuro foi por terra quando viram o menino virado em Kuririn e foi uma risada só e João decidiu que não mais iria à escola.
João assim decidiu parar de assistir TV, com medo do que poderia se transformar caso o fizesse, então passava os dias em casa lendo livros, talvez na esperança de um dia se tornar Dom Quixote, mas pra se tornar de la Mancha não é assim, não adiantou muita coisa e ele continuou com a testa brilhosa de Kuririn, aí começou a pensar que pelo menos não era o inútil do Yamcha, e aí passados alguns anos sem consumir produto audiovisual algum, de repente se viu preso a uma cadeira e a cadeira presa ao chão e o chão à frente da tevê e na tevê a imagem de um menino extremamente comum, cabelo bem cortado, calça bem bonita, camisa bem passada, barba bem aparada, cabeça bem feita, e João começou a se deseperar, a dizer que se fosse para ser assim preferia ser Kuririn, antes careca, baixinho, mas com sua parcela de ser humano interessante que sabe alguns golpes, a ser aquele que via na tela e aí viu que na verdade quem estava tentando transformá-lo naquilo que de forma alguma ele gostaria de ser eram seus próprios pais, e João conseguiu se desvinciliar das cordas e saiu porta à fora.
Passou a viver nas ruas, sem acesso à TV e por mais de 20 anos foi Kuririn, as pessoas na rua inclusive chamavam o agora mendigo João de Kuririn Pelotense, o cabelo cresceu da mesma forma que cresceu em Kuririn no final de Dragon Ball Z e o agora adulto João começou a ganhar dinheiro como sósia do personagem, viajou o mundo todo – sempre desviando da televisão – se apresentando em programas de auditório, circos e ComiCons, até que, veja você, encontrou uma sósia da Andróide 18 e por muito tempo viveram felizes até que, o horror, se deparou com uma novela em que dois homens se beijavam e João viu aquilo e automaticamente em sua cabeça passou a acreditar que agora era gay e abandonou a sósia da Andróide 18, passando a procurar alguém que se fantasiasse de Andróide 16, pois gostava muito daquele cabelo ruivo e daqueles brincos, ao que encontrou e foram muito felizes, adotaram uma menina e viveram essa promiscuidade que imensamente fere os valores da família brasileira, ao que os pais diariamente tentavam contato, rezavam terço, pagavam dízimo na esperança de ter de volta seu filho e resolveram que era preciso mais, que era preciso agir com mais força e sequestraram João o colocando com os olhos abertos tipo Laranja Mecânica na frente de uma TV onde era exibido um DVD da sua infância na esperança de que se transformari novamente no João Criança e transformou-se, voltou a ser um bebê, mas depois cresceu e os dedinhos novamente foi.

Thursday, December 04, 2014

Podridão e independência

O guarani é o hino da morte/ Para índios, árvores e animais/ O fogo queima tudo o que sobrou/ Infelizmente, Amazônia nunca mais! Estes versos poderiam muito bem ter sido escritos semana passada, quando surgiu a informação de que a presidente Dilma Rousseff planeja indicar para o Ministério da Agricultura a senadora Kátia Abreu (PMDB/TO), cujas defesas aos latifúndios e empresas como a Monsanto irritaram tanto ambientalistas quanto parte da esquerda que a elegeu. Entretanto, são parte da música Amazônia nunca mais, escrita em 1989 pela banda Ratos de Porão, que botará abaixo o Galpão Satolep no próximo domingo (7).
Para o lendário vocalista João Gordo, o caráter eterno de Amazônia nunca mais é um dos principais exemplos da forma como a Ratos faz e pensa a música: nunca descartável, sempre pensante e coerente. "Fazer o som que você é fiel. Fazemos o mesmo estilo a vida inteira. Às vezes mais puxado pro metal, às vezes pro punk, mas sempre a mesma coisa. Isso vai para a letra também. Ela não pode ser descartável. A mensagem tem que ser eterna."
Só tocar
Toda essa filosofia passa pelo fato de o grupo, desde 1981 um símbolo da contracultura na música, estar pouco se importando para as mudanças sofridas no mercado fonográfico. Se atualmente é complicadíssimo vender milhões de discos de plástico, tanto faz. Eles querem é fazer o som maldito que caracteriza a Ratos de Porão e botar o público para pensar. "A gente não está interessado em mercado, não. Queremos tocar. A gente nunca viveu de vender disco. Vivemos de fazer show, vender merchandising. O disco é só um detalhe", afirma João.
Fazer por si
Quem em 2006, ano de lançamento do penúltimo disco da Ratos, O homem inimigo do homem, apostou em contratos com grandes gravadoras, moldando seu som ao gosto de engravatados quaisquer, se deu mal. Além da vergonha que é produzir música sem conteúdo, também houve penitência quando a internet destruiu quaisquer convicções no sistema gerido por grandes empresários.
Para Gordo, a maior transformação se deu a respeito da divulgação, muito facilitada - e anabolizada - pela grande rede. Porém, cita também a mudança no consumo. "Só compra o disco quem é fã. A maioria quer ouvir a música e baixa", comenta.
Todavia, mais uma vez diz que nada disso causou problemas na Ratos, tendo em vista além do já citado fato de não serem as vendas o carro-chefe da sustentação dos membros, também o ponto de que o fã de som pesado é fiel. "Gosta de ter as coisas. Eu mesmo sou um cara que gosto disso. Mesmo quando estou duro reservo uma grana para comprar um vinil, um CD."
Foi também através da eterna independência que a Ratos não foi atingida por estas mudanças. O grupo correu sempre com as próprias pernas, desde antes mesmo de Crucificado pelo sistema, o primeiro LP da banda, datado de 1984. Sem nunca esperar por ninguém para nada. "Essa é a vantagem de ser independente", diz João. "Lógico que tentamos gravadora gringa, maior. Mas no final das contas o que vale mesmo é o do it yourself (faça você mesmo), saca? Tudo o que virou nosso foi a gente mesmo que fez, cara. Não pode esperar alguém se você mesmo pode fazer e muito melhor, do seu jeito."
Podreira
O rock morreu, dizem. Não somente no som, mas na filosofia contracultural pregada ali. Mentira. Talvez pense assim quem apenas recebe o rock, não o procura. Gordo, cujo estilo diz ser carne "podre, satanás e sexo horrível", afirma que vai atrás apenas de coisa extrema. Do death metal pra cima. E, segundo ele, hoje em dia ainda se faz muito som do tipo de qualidade. "Tem muita gente fazendo coisa boa, extrema hoje em dia ainda. Agora, se for hardcore, punk rock, eu prefiro os antigos."
Mas segue na mesma linha: não adianta o som ser bom se for sem conteúdo. "Tem muito cara que faz som pesado e aí vai ver e só passa ideia de girico. Um monte de banda que faz som bom e os caras são uns fascistas."
Bandas locais
No domingo serão quatro as bandas que abrirão para a Ratos de Porão: Suburban Stereotype, Freak Brotherz, Postmorten e Diatribe. Músicos que há anos lutam por reconhecimento na própria Pelotas e esbarram em obstáculos como a maior valorização por parte do pelotense em relação à artistas de fora do que exatamente os locais. Para Gordo, o problema é nacional. "Isso faz parte do brasileiro. Ele não apoia a cena local, seus próprios heróis. Isso não acontece na Argentina, por exemplo. Aqui o brasileiro quer ver a banda se ferrando e dar risada", comenta.
Diego Gularte, vocalista da Suburban Stereotype, é também membro da Urbe, organizadora do evento. Para ele, esse será o show mais louco que a cidade já viu. "Lugar pequeno, lotado, com todo mundo na mesma vibe e uma lenda da música no palco."
Enquanto produtor, Gularte diz ser um tanto louco construir uma noite desse tamanho, "botando a cara na coragem mesmo e vendo dar certo".
Serviço
O quê: show da banda Ratos de Porão
Quando: domingo (7), às 18h
Onde: no Galpão Satolep, José do Patrocínio, 8
Ingressos: antecipados no terceiro lote custam R$ 50,00 e podem ser adquiridos na Studio CDs, Scissors e no Papuera Bar


*Matéria escrita para o Diário Popular

Monday, December 01, 2014

Música para combater o machismo

O leitor pode fazer o exercício. Pense em dez bandas de rock mais famosas em todos os tempos no mundo inteiro. Pode pensar em vinte. Talvez em trinta. Procure, neste número que veio a sua cabeça, quantas são formadas por mulheres ou ao menos têm uma como protagonista. Muito provavelmente serão poucas. Pouquíssimas. E isso não é resultado, como os homens insistem em acreditar, de demérito dos grupos formados por elas. É consequência de séculos, milênios de machismo, estando este presente nas mais variadas parcelas da sociedade, inclusive no meio musical. Em Pelotas não parece ser muito diferente, mas uma banda tenta lutar contra a opressão através das fortes e rápidas notas do punk rock. Apesar de estar com nova formação, a She Hoos Go não arreda pé do feminismo.
A influência vem principalmente de Joan Jett, que costuma figurar em listas de melhores guitarristas de todos os tempos - quase sempre a única mulher - desde os tempos do The Runaways, banda clássica do feminismo musical. Em 2012, ano em que se apresentou no Lollapalooza Brasil, Joan comentou o machismo que reina o meio. Contou de quando, ainda adolescente, se aventurou na música pela primeira vez influnciada pelo camaleão David Bowie e Suzi Quatro. Decidiu então fazer aulas de violão, ao que ouviu: meninas não podem tocar guitarra, muito menos rock.
A mesma frase foi vociferada à ela diversas vezes durante a sua carreira. Mulheres têm de tocar instrumentos delicados, como violoncelo e harpa, nunca guitarra. Joan, porém, sempre calou os machos com a força de uma rockstar e é dona de I love rock'n roll, um dos maiores hinos do gênero.
Nunca se entregar
O espírito foi incorporado também na She Hoos Go. "Passamos por diversas mudanças na formação, mas nunca nos abalamos, nunca nos entregamos", comenta a baterista Simone Del Ponte. A banda foi criada no verão de 2010, primeiramente com o objetivo de tocar covers de bandas como o próprio Runaways, o L7 e o Hole, resistência feminina no grunge dos anos 90, entre outras. A partir daí vieram shows em festivais de Pelotas, outras cidades do Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, o qual consideram o mais importante até os dias de hoje.
Após última mudança, o grupo passou a ser formado por Simone, Lidia True Love nos vocais, Ariane Behling no baixo e Giuliano Jack Strat na guitarra. A baixista é quem comenta possíveis transformações trazidas pela incorporação de novos membros. "O som está mais agressivo e engajado, o vocal da Lidia trouxe uma cara nova pra banda e o Giuliano na guitarra deu uma energia extra nas músicas.
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Empoderamento
Junto com a nova formação, na última semana a She Hoos Go terminou de lançar quatro músicas. Anteriormente compostas para formarem um EP, as canções foram mostradas ao público individualmente e evidenciam que a chama da luta contra o machismo permanece acesa em versos como Eu não posso esquecer o que você disse, é sempre igual, dia após dia, ou Você pode até procurar por uma Afrodite, mas há uma bruxa em seu caminho. E ela pode ter cabelo preto, cabelo vermelho. 
Segundo Simone, a música como alerta e arma contra o machismo é importante, por exemplo, por empoderamento. "Podemos passar através de nossas letras as vivências do dia a dia, das lutas que travamos pelo feminismo." Ela, porém, acredita que aos poucos a luta tem sido vencida, pelo menos nas guitarras. "Antigamente tinha muito mais preconceito em relação às mulheres no rock. Ainda tem algumas pessoas que acham que as mulheres não têm capacidade de fazer musica, mas acho que esse pensamento retrógrado está se dissipando."
Entretanto, ainda segue vivo outro problema: o de certa sexualização sofrida por mulheres no mundo da música. Ser reconhecida pelo som, e não pelo fato de ser do sexo feminino. Algo que a vocalista da moderninha Chvrches, Lauren Mayberry, cansa de falar em seus discursos sobre gênero, recusando o rótulo de "apenas mais um rostinho angelical na música" e condenando inclusive aqueles fãs da banda que se mostram apaixonados pela Lauren dentro dos padrões de beleza impostos pela sociedade do que exatamente pela Lauren exímia vocalista e ser pensante. Simone partilha da opinião da escocesa: "É uma situação superchata não ser levada a sério por ser mulher ou por ser considerada bonita (faz sinal de aspas). Esse tipo de pensamento e atitude não cabe mais".
Riot Grrrl 
Movimento criado nos anos 90 abrangendo fanzines, festivais e bandas de harcore e punk, o Riot Grrrl (lê-se Riot Girl) surgiu com o objetivo de se estabelecer como um movimento cultural feminista, incentivando a mulher a se informar e reivindicar seus direitos. Tendo a música como um de seus principais alicérces, o Riot Grrrl foi incentivado por bandas como Bikini Kill e Bratmobile. Atualmente, a provável principal representante é a Pussy Riot.
Outras bandas protagonizadas por mulheres em Pelotas
- Vetitum
- Nefertiti
- KAME
- Trail of Sins
- M26
- Gru

*Matéria escrita para o Diário Popular

Friday, November 21, 2014

O folclore, o jazz e o acordeom

O acordeom, dá para se dizer, é dos instrumentos mais versáteis no mundo musical. Explica-se: cai como uma luva tanto na mais bela canção tradicionalista gaúcha, quanto no mais classudo dos tangos ou ainda na música cigana, atualmente melhor representada pelo gipsy punk do Gogol Bordello. Essa versatilidade possibilitou o diálogo do francês Richard Galliano com o sertão nordestino. Dos maiores acordeonistas da atualidade e responsável por aproximar o instrumento do jazz, o francês faz a abertura do Pelotas Jazz Festival hoje, às 18h, no Palco TIM Music.
A ligação está gravada: Richard Galliano au Brésil, produzido em 2008, é um disco com gosto de feijão misturado com coq au vin. Vatapá com escargot. Glauber Rocha com Godard. Romário com Zidane. Gravado na Paraíba, o álbum traz o encontro do acordeonista com grandes mestres da música nordestina - mais especialmente o forró -, como Chico César, Aleijadinho de Pombal e Dominguinhos, este destacado junto com Sivuca por Galliano quando lhe é perguntado sobre referências brasileiras no acordeom.
Todas as letras do disco foram escritas em português e se destacam Nego forró, Princesinha do choro e uma versão de Asa branca. Interpretada em parceria com Dominguinhos, esta traz aos ouvidos o mais legítimo forró pé de serra, sendo impossível não balançar a perna ou não imaginar um casal dançando aqueles passos rápidos que apenas o gênero é capaz de proporcionar.
Se misturam
Em suma, o disco dá a impressão de que Galliano está sentado em um muro, acordeom às mãos, descalço, com uma fogueira na frente. Tal simpatia para com a cultura brasileira não é mero acaso. Diz o francês que as mesmas pulsações que teve contato no sertão são encontradas no Magrebe - a região noroeste da África -, perto da França. "Eu nasci na parte latina da Europa, a bacia do mediterrâneo. Folclores se misturam."
Sobre o assunto, Galliano diz acreditar que a música, assim como a dança, pode e deve ser utilizada como mecanismo de resistência cultural de qualquer localidade. Segundo ele, neste caso a mensagem que ela passa pode ser muito mais forte e influente que um discurso político exatamente por ter mais fácil imersão em todas as camadas da sociedade. "A dança e a música podem entreter e convencer todo um povo", diz, afirmando ainda que apesar de no Brasil o forró ter resistido, agitando e fazendo vibrar multidões, na França a musette, mutação mais simples, sensual e próxima do acordeom da valsa, não foi capaz do mesmo, praticamente desaparecendo. "Acabar com as tradições do folclore é muito perigoso para a identidade de um povo, assim como sua língua e os diferentes dialetos", afirma.
Aliás: foto postada no perfil oficial de Chico César em uma rede social mostra que a parceria que resultou em Richard Galliano au Brésil não cessou a produção. No retrato o brasileiro aparece com Galliano no Estúdio Fábrica, em Recife, onde, diz, gravaram um disco em - acredite se quiser - dois dias. Tudo gravado ao mesmo tempo, inclusive a voz.
Na família
Vem de casa o contato com o acordeom: seu pai, Lucien Galliano, era professor do instrumento. Com a proximidade, foi natural encarar o pesado instrumento logo aos quatro anos, cujas aulas dividiam seu tempo com o aprendizado de harmonia, contraponto e trombone no Nice Conservatoire.
A epifania que o levou ao jazz se deu quando teve contato com a obra do trompetista Clifford Brown, de quem diz ter copiado os refrões, impressionado por seu tom e movimentação. Com o aprofundamento da pesquisa, Galliano começou a perceber pouco uso do acordeom no gênero, ao que descobriu estadunidenses especialistas nessa aproximação e acordionistas italianos como Felice Fegazza.
Nos anos seguintes, já em Paris, Galliano, ainda buscando essa junção do jazz com o acordeom, focou a carreira na composição e arranjos em um grupo fundado por ele juntamente de outros jazzistas, além de produzir trilhas sonoras para filmes.
Em 1991, após quase duas décadas, o acordenista optou por seguir o conselho de Astor Piazzolla, músico argentino que foi seu mestre amigo, e voltou às suas raízes:  tratou de dar atenção à valsa musette e aos tangos. Inspirado por pessoas como Gus Viseur (único acordeonista de jazz membro do Hot Club de France) e Tony Murena, adaptou o acordeom a um ritmo três-por-quatro, livrando o instrumento da imagem antiquada que o assombrava, levando-o para ainda mais perto do frescor do jazz. Daí nasceu o inovador disco New musette, que o fez vencedor do prêmio Django Reinhardt, da Académie du Jazz, na categoria  músico francês de 1993.

*Matéria escrita para o Diário Popular

Tuesday, November 11, 2014

Vasculhar vale a pena

São sempre os mesmos. Reclamam disto alguns visitantes da 42ª Feira do Livro de Pelotasquando percebem estar de forma onipresente nas bancas do evento grandes publicações, de maior apelo comercial - e muitas vezes vazias de conteúdo. Essa falta de variedade, porém, pode ser suprida com uma pesquisa mais profunda. Não demora muito até que livros quase esquecidos em meio a best-sellers saltam aos olhos com bom desconto.
Os exemplos transcendem estilos e públicos: tem pra todos. O primeiro é inicialmente dedicado ao público infantil, mas qualquer um se delicia com o modo e a história que Adriana Falcão escreveu em seu Luna Clara & Apolo Onze, livro que conta a distraída saga de uma menina que vive no mundo da Lua. O título, que costuma custar por volta de R$ 49,00 está representado por diversos exemplares pelo preço de R$ 10,00 na banca especial de saldos da Cia dos Livros.
Esta, aliás, deve ser vista com carinho por quem quer ler sem pagar tanto. A livraria, em contato com diversas editoras, promove na Feira do Livro de Pelotas com grandes descontos diversos títulos do mais variados gêneros. Estão ali com bons preços desde o já citado Luna Clara & Apolo Onze até livros lançados recentemente, como Cidade dos ossos, primeiro da série infanto-juvenil Os instrumentos mortais.
Saldos nos sebos
Para quem gosta do trabalho de garimpo na Feira do Livro, é quase obrigatória a passagem pelo Sebo Icária, que coloca à venda títulos que chegam a custar R$ 3,00. Dos mais variados estilos. Renan Teixeira, estudante da UFPel e oriundo do interior de Minas Gerais, afirma que costuma fazer essa procura em todas as feiras literárias que já teve contato. "Essas feiras e essas bancas em especial promovem uma maior democratização dos livros e de temas a se discutir, além de promoverem a ocupação do espaço público", diz, enquanto procura livros de filosofia e sociologia e recebe de um amigo uma valiosa dica: um exemplar de Cândido, do filósofo iluminista Voltaire.
Eric Barreto, funcionário do sebo que está trabalhando na Feira do Livro, afirma que o público que mais costuma procurar livros na banca e se surpreender com o que acha é o de pessoas mais velhas. "Tem gente que leu um livro há 20, 30 anos e não imaginava encontrar mais", diz, dando como exemplo uma senhora que foi até o local e encontrou um livro que a mãe costumava ler para ela, quando criança. "Conquista pelo lado sentimental", afirma Barreto.
Em uma rápida pesquisa pelas prateleiras da banca do sebo Icária, a reportagem do caderno Zoom encontrou pelo menos dois títulos (além do já citado Cândido, que Teixeira adquiriu e não está mais disponível) que devem ser levados para a casa. O primeiro é uma pérola do período mais fértil da crônica brasileira: é Primo Altamirando e elas, onde Stanislaw Ponte Preta conta os mais curiosos causos de um dos supostos membros da família Ponte Preta. No local o exemplar sai por R$ 5,00. O outro é um volume duplo, bonito e de capa dura do clássico dos clássicos Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes. R$ 30,00 pagam os dois.
Achados em nossa pesquisa na 42ª Feira do Livro de Pelotas (teto de R$ 15,00):
Luna Clara & Apolo Onze, de Adriana Falcão R$ 10,00
Primo Altamirando e elas, de Stanislaw Ponte PretaR$ 5,00
Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes
R$ 30,00 o volume duplo
Bob Dylan - Canções comentadas
R$ 15,00
A câmara clara, de Roland Barthes
R$ 15,00

*Matéria escrita para o Diário Popular

Wednesday, November 05, 2014

Feira debate a literatura

Está em processos de se tornar passado a época em que a Feira do Livro de Pelotas se tratava de um evento cujos objetivos eram oferecer descontos em livros caros a um público subjetivado como consumidor e servir como um aprazível passeio de final de semana na praça Coronel Pedro Osório. Cada vez se encorpa mais a feira através de oficinas e rodas de conversa que pretendem não apenas corresponder ao viés comercial da literatura, mas às discussões acerca do assunto. Na 42ª edição, o carro-chefe desta é a participação dos escritores Fabrício Corsaletti, Paula Fábrio e Paulo Sandrini, que realizam nesta quinta-feira (6) uma roda de conversa, mediada pela professora Denise Bussoletti, e de quinta (6) a domingo (9) ministram oficinas em Pelotas.
Em qualquer papel
Corsaletti será o primeiro. Sua oficina, que já tem inscrições esgotadas, tem início nesta quinta-feira (6) na Bibliotheca Pública Pelotense (BPP). O assunto será a crônica, campo em que se sente à vontade, tendo em vista o recente lançamento de Ela me dá capim e eu zurro e sua participação desde 2010 como colunista do jornal Folha de São Paulo. "A partir de análises de crônicas vou discutir características dos autores e do gênero", explica.
Sobre escrever para livros e para jornais, Corsaletti afirma não ver quase nenhuma diferença. Tenta, independentemente do meio, fazê-lo da melhor forma possível e escrevera nos periódicos com o intuito também de, no futuro, reunir essa produção em um livro. Destaca, porém, a participação mais direta do leitor nos escritos feitos para esses. "O leitor dos jornais é real, reclama, elogia", afirma.
Corsaletti, que iniciou suas publicações na poesia (Movediço, de 2001, O sobrevivente, em 2003 e uma reunião em 2007 dos dois acrescidos de Estudos para o seu corpo e História das demolições), destaca também como "ótimos" os eventos literários como o que a Feira do Livro de Pelotas caminha para se tornar: estabelecendo o diálogo e o debate. "Ajudam a aproximar livro e leitor, que é o que importa", comenta.
Estreia com experiência
Para Paula Fábrio, esta transformação nos eventos literários brasileiros os fez contemplar os dois lados: tanto os descontos, importantes para o acesso da população à literatura, e a discussão acerca das letras. "Não adianta promover o preço se não há interesse sobre o livro. Creio que a discussão sobre os livros será cada vez mais crucial, a fim de resgatar os déficits educacionais que vimos acumulando nos últimos anos. Caso isso não ocorra, de nada adiantará oferecer livros com preços reduzidos", diz, destacando como expansão dessa demanda pela proximidade leitor-autor as oficinas ministradas por escritores e a interatividade proporcionada pelas redes sociais.
Paula, 44, estreou na literatura em 2013, com Desnorteio. Da melhor forma: a história de três irmãos que viraram mendigos ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria estreante com mais de quarenta anos. Ela é, porém, exceção quando se trata de premiações, tendo em vista um número cada vez menor de mulheres contempladas e participantes em eventos literários.
Para pontuar a discussão, ela acrescenta um dado: neste ano houve um evento - a autora não cita qual pois supõe ser este um sistema automático - que contou com 35 escritores, sendo apenas uma mulher. "Suspeito que há uma herança nefasta do machismo. E isso, acredito, não é algo simples e direto, 'não contemplaremos mulheres neste e naquele prêmio', não é isto, é algo mais profundo, subliminar e às vezes até inconsciente", comenta. E explica: pouco tempo atrás, um colega lhe contou que sua editora recebia cinco vezes menos originais de mulheres que homens. Uma escritora mais radical (talvez mais calejada) sentenciou: "é que nos matam no nascedouro." Segundo Paula, esse tratamento diferenciado dado a homens e mulheres na literatura é herança de uma cultura machista persistente.
Apostas reduzidas
Paulo Santini, que ministrará O "eu" é um "outro", crê que a promoção de oficinas e rodas de conversa que debatam as letras em eventos literários fazem parte de uma espécie de resistência, por não segregarem autores que não estão no eixo de grandes editoras. "Isso promove ao mesmo tempo uma variante de vozes literárias diferentes, concordantes ou divergentes tornando o debate acerca das letras bem mais interessante", comenta, afirmando que esta pluralidade nem sempre é promovida pelo mercado editorial. "O ideal de uma feira, creio eu, é privilegiar o acesso às pessoas a escritores e obras que, talvez, sem a feira, elas não chegariam a conhecer", completa.
Sobre o momento para escritores, ele acompanha a colega em certo pessimismo. Cita a primeira década dos anos 2000, quando, afirma, havia menos temor por parte das editoras em publicar autores menos conhecidos, sem preocupação com o mercado. "E sejamos sinceros, mercado pra quem? O mercado não é grande para a literatura. Por isso, Atualmente, as apostas são mais reduzidas. O tiro precisa ser mais certeiro", critica o autor de Vai ter que engolir, O estranho hábito de dormir em pé e Código d'incríveis objetos & histórias de lebensraum, todos de contos, lamentando ainda a baixa receptividade do gênero nas editoras.

*Matéria escrita para o Diário Popular

Monday, October 27, 2014

Rap de quem não se rende

Muito bom momento vive o rap em Pelotas.Principalmente no que diz respeito à produção: a nova safra tem se preocupado bastante com o profissionalismo de seus trabalhos, através de batidas próprias e letras com conteúdo. Um dos grandes exemplos para esta geração, pois, a Família IDV (Ideologia de Vida) lançou na semana passada um disco após quase dez anos sem lançar nada físico. É IDV, que sucede Alforria, de 2005, com faixas produzidas de 2006 para cá.
São 17 músicas que mostram uma das principais evoluções desenvolvidas no rap da Zona Sul: todas elas são feitas por beatmakers daqui em estúdios situados na região. Segundo o rapper Gagui IDV, o objetivo do lançamento é agrupar todas essas composições, disponibilizadas soltas durante os anos. Organizar o material de forma física para o apresentar.
Gagui afirma que o lançamento também partiu pela cobrança do público. "O pessoal nos cobrava nas ruas também. Então às vezes a gente ia lá, gravava uma mp3. Até que decidimos juntar tudo mesmo."
Sempre social
Sobre a proposta do novo trabalho, Gagui diz que nada mudou. "Comecei a cantar rap em 98. Sempre tive cuidado com a proposta social. Fazer o rap com conteúdo, com protesto. Nunca me influenciei por modismos, tratar outros temas. Sempre tratei o rap como coisa séria. Aconselhando", afirma, argumentando que conheceu o estilo nos anos 90, auge de artistas como os Racionais MC's, Thaíde e Sistema Negro. "Trago bastante isso na minha concepção de rap. Dele ser um instrumento de transformação. Ser algo voltado ao lado social, à crítica. Curto e respeito quem vai por outra vertente, mas a minha ideia é a postura de protesto", completa.
Todavia, Gagui vê essa variação no discurso do rap como uma transformação. Mudou e ele teve de acompanhar essa mudança. É outra geração, outros problemas e outros protestos. "Às vezes nem protesto. Acho válido. Muita gente fala que o rap se perdeu, mas eu não vejo dessa forma. É adaptação. O mundo não é mais o dos anos 90. Os guris que fazem rap na cidade, nunca vi tão forte, com tanta gente boa e preocupada com o profissionalismo, em ter uma apresentação boa, com boa produção."
Na cidade
Ainda sobre a cidade, Gagui destaca a Semana Hip Hop de Pelotas, reivindicação sua à Câmara de Vereadores quando trabalhava com o deputado Catarina Paladini (PSB) a questão no Estado. A partir daí, várias cidades, como Rio Grande, Esteio e Pelotas aprovaram lei que incluiu o evento no calendário oficial do município. "Acho superimportante uma semana voltada a uma cultura de transformação. Muitas vezes o governo falha em não proporcionar cultura e lazer para a periferia, então o hip hop faz esse papel que não é o simples protesto", comenta, destacando que a iniciativa surgiu por, diz, haver um abandono dos bairros. "Conseguimos mostrar que o rap vem fazendo um trabalho de resgate e de socialização nas periferias."
Gagui fala também sobre a força da cena atual do rap pelotense. Ele concorda com o rapper F.I.L.L., autor de Três pintas em minha mente quando este afirma serem as rimas daqui mais talentosas do que as da capital gaúcha. Conta que, quando começou, a referência eram os grupos de Porto Alegre, como o Da Guedes. Ao que estes terminaram suas atividades em paralelo com o crescimento da cena pelotense. "Então o foco veio pra cá. O próprio pessoal de lá reconhece isso. A gente tem Pok Sombra, Guido, F.I.L.L., uma safra que Porto Alegre não tem."
O rapper diz crer, inclusive, que a cena pelotense só não cresce mais exatamente pelo fato de não estar em uma capital. "Se fossem os mesmos caras em São Paulo com certeza estariam trabalhando e vivendo do rap." Ele critica certa postura de colonização por parte dos artistas portoalegrenses em relação aos de Pelotas. "Nos perguntavam quando que a gente ia trazê-los para tocar aqui. Era uma visão meio colonizadora, porque nunca nos levavam para tocar lá. Fomos fortalecendo a nossa cena aqui, a deles foi enfraquecendo lá e os caras tiveram que abrir as portas pra gente."
Poder Público também deve
Outro ponto, acredita, é a falta de políticas públicas voltadas para a cultura - não apenas do rap. Cita a dificuldade em se poder viver da arte em Pelotas. "Eu mesmo trabalho no comércio, o rap acaba ficando em segundo plano. Falta uma estrutura que nos dê cachê e a gente possa sustentar a família com esse trabalho."
Vai além: no hip hop a situação é ainda mais complicada, levando em conta seu viés político e de conscientização. "Isso não é viável, eles não querem que o pobre do gueto pense. Querem ele anestesiado, entregue à criminalidade. A gente vem com a proposta de fazer o cara pensar no porquê de não ter tido oportunidades na vida. Aí jogamos em cima do governo. Não tive acesso porque a minha vida foi diferente de quem veio de outra classe social", afirma, acrescentando que participa de conselhos de cultura há dez anos e nunca viu políticas voltadas à cultura da periferia ou que busquem a descentralização.

*Matéria escrita para o Diário Popular

Sunday, October 19, 2014

Cultura que vem das ruas em debate

O barulho da lata de tinta é praticamente uma extensão do sample. Dita o ritmo da dança e é semelhante ao quique da bola. Pudera. O hip hop, lido como manifestação cultural dos guetos, é mais do que a soma de elementos como o grafite, o rap, o break dance e o basquete. Utilizando as ruas como cenário em comum. Juntar todas essas manifestações e valorizá-las é o objetivo da Semana do Hip Hop, que invadiráPelotas a partir desta segunda-feira (20).
A iniciativa surgiu através da reivindicação do rapper Gagui Idv, que a levou para a Câmara de Vereadores através do vereador Ivan Duarte em 2011. Na ocasião foi criada a lei 5.845, voltada à criação da Semana Hip Hop de Pelotas.
Desde então a associação, surgida pouco antes, toca o projeto e faz trabalhos de resgate de artista e de pessoas que estão afundadas nas drogas, através de oficinas e workshops em escolas e entidades comunitárias - às vezes nas próprias ruas dos bairros. "É um trabalho de formiguinha. A gente faz e através disso vai resgatando essas pessoas, trazendo elas para a volta e em seguida as instrumentalizando. É tornar visível uma pessoa que estava na invisibilidade", comenta o coordenador da associação, Vagner Matos.
Segundo ele, o hip hop tem o poder de modificar totalmente a vida de uma pessoa - é um mecanismo de transformação. Qualquer um dos elementos, música, dança, esporte e grafite, é definitivo. "É a transformação através da cultura. Não é só cantar, fazer o grafite, dançar. Existe toda uma metodologia, uma narrativa, uma discussão político-social que o hip hop leva. Denuncia as políticas públicas, sociais, a criminalidade e a violência. É uma ferramenta que, além de transformar, informa."
É arte e é mensagem
O muro está em branco. O motivo, a pouca utilização do espaço - ou a utilização de modo que, acredita, não é da melhor forma. É um desperdício mantê-lo assim, virgem. Uma cor não só não faz mal como fará bem. Não só para si, mas para quem passar por ali.
Gabriel Alves, ou Gas, começou a grafitar aos 12 anos. Tem no antebraço tatuagem com o rosto do rapper Notorious B.I.G. Natural de Rio Grande, agora mora em Pelotas e busca se inserir em um mercado que vê ainda restrito por aqui. Segundo ele, grande parte dos grafiteiros se vê obrigada a praticar outra atividade para se sustentar. "Tenho uma subvida que é o que me traz comida e isso aqui serve para me fazer feliz", afirma.. Ele diz inclusive que alguns colegas viraram tatuadores para seguir fazendo o que gostam de maneira mais rentável. Gas conta que até consegue ganhar algum dinheiro com o grafite, mas gasta tudo com o material, de custo elevado.
Gas atualmente ministra oficina de grafite em uma escola. Lá, lida com a questão histórica e prática da arte, bem como o modo com que ela se inseriu na sociedade, "o jeito com que a população lidava com ele de forma criminosa, a ponto de prefeituras criarem projetos para limpá-los", afirma, referindo-se à imagem que o grafite luta para se afastar, de se limitar à sujeira de uma cidade.
Tentar discutir o papel dele hoje em dia é o objetivo de uma das palestras da Semana do Hip Hop, baseada na questão do grafite e da pichação. Quem a ministrará é a professora Celia Constenla. "Abordaremos as diferentes formas de intervenção urbana, como elas surgiram, quais as diferenças entre elas e a importância da educação ambiental e do cuidado com o patrimônio público de nossa cidade", conta.
Diferenças e semelhanças
Segundo ela, a diferença está em a pichação ser uma provocação para as autoridades e demarcação de território "sem qualquer pretensão artística, caracterizada pelo ato de escrever frases ou assinaturas em muros, prédios, monumentos e vias públicas, sendo um ato de vandalismo", enquanto o grafite "se caracteriza pela qualidade técnica que envolve planejamento detalhado, frases poéticas e desenhos mais elaborados, feitos com estêncil ou a mão livre, sendo realizado com o objetivo de valorizar o patrimônio."
Já Gas não vê exatamente uma diferença entre os dois em relação à estética: está mais relacionada à permissão ou não da manifestação. "Grande parte dos grafites está bastante relacionada com a pichação. Normalmente o que a gente vê de pichação são discursos de ordem. O grafite começou assim também. É a mesma coisa só que foi permitido", diz, salientando que usa como regra não grafitar - sem autorização - casas de pessoas de classe baixa. "Este local aqui (um terreno composto por grama alta, algumas paredes, diversos pacotes de preservativo abertos e variados utensílios para uso de drogas), por exemplo. É abandonado, ninguém habita. É usado pro mal, inclusive. Se fossem me cobrar por pintar aqui, teriam que cobrar os outros que vêm aqui e se drogam também."
Célia lembra que, até 2011, grafite e pichação eram a mesma coisa aos olhos da lei: criminalizados da mesma forma. Segundo ela, há preconceito em relação ao primeiro e a solução passa pela conscientização nas escolas de que pichação trata-se de um crime ambiental e contra o patrimônio.
Das quadras para o céu aberto
Os movimentos confundem - e que bom que seja assim: é dança ou é esporte? Por que não os dois? Esse é o conceito do basquete de rua, braço mais esportivo do hip hop. Nessa modalidade são deixadas de lado características essenciais da versão de quadra. Se vai a importância principal em relação aos pontos e entra a brincadeira através de manobras. Chega a ser mais artístico do que de fato um esporte, comenta Guilherme Tavares. "Em jogos tu vês muita técnica. Na modalidade street isso é um pouco abandonado pelo fato de passar mais a ideia de brincadeira. A moral é enganar o outro na quadra até fazer ponto", explica.
Michel Knuth lembra a semelhança com o break dance. "Os movimentos em quadra são parecidos e quem dança tem bem mais facilidade para jogar." Eles exemplificam com uma oficina que ministraram em 2009 ligada a Central Única das Favelas (Cufa). O objetivo era realizar malabarismos com a bola. Porém, um participante resolveu utilizar o break junto e colocou uma música. "Mostrou a ligação entre a música hip hop, break dance e basquete", comenta Tavares. Ele lembra também que o basquete de rua nasceu do fato de a população das periferias não ter acesso a quadras bem equipadas para o desempenho do esporte.
Nas rimas
"Tem que trabalhar bastante ainda." Com certeza na voz, assim fala Filipe Fontoura, o F.I.L.L., rapper pelotense que recentemente lançou Três pintas em minha mente, disco que aborda sua "tripolaridade". Sua fala tem a ver com o momento vivido pelo rap na cidade: frutífero, com boa aceitação da população, mas em momento algum permitindo baixar a guarda. "Tem que trabalhar a imagem ainda. Se profissionalizar, buscar a autogestão.
F.I.L.L. afirma que, apesar de estar ouvindo bastante, Pelotas já ouviu mais sua própria cena, a qual considera mais forte e talentosa do que a de Porto Alegre. Cita outros rappers como Zudizilla (Luz), Pok Sombra (Aonde vou chegar) e Garcez DL (NaturezAÇÃO). "A cidade já ouviu mais, mas tem reconhecido bastante nosso trabalho. Já lá em cima estão nos escutando", afirma. Recentemente, KL Jay, membro dos Racionais Mc'S citou Zudizilla como um dos principais nomes da nova geração do rap.
Representante de outra leva - faz rap desde 1990 - , Ligado Branco Radical começou com seu grupo Mc'S Radicais, na Guabiroba. "Sou de uma época em que o rap falava das quebradas, da periferia, influenciava o jovem a se informar e não fazer parte do sistema. Meu rap é de resgate, de transformação", diz, afirmando acreditar na revolução que o rap fez em sua vida, o deixando longe do álcool e das drogas.
No passo da dança
A dança, quando o assunto é hip hop, não foge à regra: é nas ruas que se desenvolve de forma mais natural, livre. É com técnica aliada à liberdade e à brincadeira nos passos. É o break dance e a dança de rua, que através do Trem do Sul, tem em Pelotas grande força.
O grupo formou-se em 2006, quando Paulo Monteiro resolveu levar para a sua escola, a Nossa Senhora dos Navegantes, a proposta do Piratas de Rua, que representava o break dance na cidade à época. A iniciativa cresceu e Monteiro tornou-se o coreógrafo oficial de um grupo que passou a batalhar de igual para igual com as principais companhias do estilo por títulos em campeonatos sul-americanos, sempre com o objetivo principal de mostrar ser possível vencer na periferia através do talento.
A mais recente vitória foi a participação no Campeonato Mundial de Hip Hop, em Las Vegas, onde representaram o Brasil. Após intensa luta para conseguir apoio para viajarem, os membros lá estiveram e receberam elogios. Tagner Mattos, que ministrará na Semana do Hip Hop uma oficina de locking, foi elogiado pelo criador do estilo e tornou-se o primeiro brasileiro a avançar para as quartas de final na categoria.
Um zine do gueto
Do final dos anos 1990 até o início dos 2000, todas estas vertentes do Hip Hop, principalmente suas versões pelotenses, estiveram presentes e encontraram espaço para divulgação e debate em uma publicação feita por quem vive a manifestação cultural diariamente. Foi em 1998 que Jair Brown criou o zine Batida de rua, com o objetivo de espraiar para outros lugares o que se fazia em relação ao hip hop na cidade.
Pegou então outros fanzines para se basear, chamou Elio Stolz e decidiu lançar o seu. O início foi complicado, como toda produção independente: Brown não sabia muito bem como imprimir e o custo era muito elevado para uma iniciativa sem muitos apoios. "O primeiro fui eu que escrevi inteiro, mas depois fui agregando pessoas que se identificassem com a proposta para darem sua contribuição", conta.
Brown explica que Batida de rua foi criado com a intenção de destacar Pelotas. "Tínhamos um monte de grupos de rap, dança e grafite, mas muita gente achava que na cidade só tinha gaudério", diz, contando que passou a mandá-lo para outros lugares através de trocas com outras pessoas do país inteiro. "Até hoje tem gente que ainda me pede", conta.
E ele pretende voltar: a ideia era retornar com o Batida de rua já este ano, mas outros projetos impediram. Para 2015 deve acontecer. "Sinto que está fazendo falta pro pessoal do hip hop, tem muita gente hoje consumindo a 'cultura bunda', que não ensina nada. A molecada podia estar aprendendo algo cultural e se perde", comenta.

*Matéria escrita para o Diário Popular

Friday, October 17, 2014

Musa Híbrida no Galpão nesse sábado

A nova fase do Galpão Satolep já recebeu eventos voltados ao rock, ao funk, ao hip hop e a todos estes juntos. Receberá em novembro o punk da Ratos de Porão. Neste final de semana será a vez do lirismo eletrônico e engajado da Musa Híbrida, que se apresenta na casa neste sábado (18), às 23h59min, em festa organizada pela banda e batizada de Felicidade Clandestina, mesmo nome de música do trio e de um dos livros mais sensíveis da escritora Clarice Lispector.
A Musa nasceu em 2012 juntando dois ex-Canastra Suja, Alércio Pereira e Vini Albernaz com a voz docemente sensual de Camila Cuqui e apresenta proposta que une as tendências eletrônicas da música atual (acrescidas aqui da suavidade de Albernaz) com uma pitada essencial de Brasil. O primeiro disco, homônimo e lançado final de 2012, decretou o trio como principal queridinho da juventude tida como alternativa em Pelotas. Não só pelas músicas: as letras tocam diretamente o universitário pelotense, oriundo dos mais diversos pontos do Brasil. Tocam por abordar temas atuais e que lhe diz respeito, como as liberdades individuais e o mundo on-line, caso da irônica Hashtag.
O primeiro show, diga-se, foi no próprio Galpão, ainda em 2013. Albernaz afirma que é o lugar mais importante da cena musical da cidade. "É ali que muita banda nasceu e circulou", diz.
Mais eletrônico
A fórmula, aprovada pelo público e pela banda, foi reforçada no segundo trabalho: Verde fosco roxo cinza investe ainda mais no eletrônico, se aproximando da estética de bandas como o The XX e Chvrches.
Segundo Albernaz, não há um rompimento de fato com o anterior, mas um resgate de elementos trabalhados pelo trio em seu princípio. "Essa coisa do eletrônico e de usar instrumentos não tão familiares ainda é novidade, mas acredito que conseguimos encontrar uma sonoridade mais nossa, mesmo que ela seja mutante - flertando com samba, groove, trip hop, rock, jazz e o que mais possa ser, mesmo não sendo isso de fato", diz, afirmando que talvez a maior diferença entre os dois trabalhos se dê ao vivo.
Serviço
O quê: festa Felicidade Clandestina, com show da banda Musa Híbrida
Quando: neste sábado (18), às 23h59min
Onde: no Galpão Satolep. Fica na José do Patrocínio, 8
Ingresso: antecipados custam R$ 10 na Studio CDs e na Vida Quadrada

Friday, August 22, 2014

A subjetividade anárquica em quadrinhos

“Esse aqui, por exemplo. Eu não quis dizer nada”, diz Rafael Sica. E tem explicação: “Percebi com as tiras sem palavras que as pessoas faziam seu próprio sentido, entendiam do jeito que elas queriam. Então não adiantava eu propor alguma lógica se todo mundo buscava o seu sentido.” Com sua produção sem exatamente uma lógica de narrativa, Sica, nascido em Pelotas, está de volta à cidade e expõe uma mostra na Casa Paralela com inauguração nesta sexta-feira (22).
A exposição é uma versão estendida do trabalho que o quadrinista apresentou em Porto Alegre um tempo antes. Lá, contou que estava de partida para Pelotas e queria expor por aqui. Contatos o levaram ao sócio da Casa Paralela Chico Machado e o local recebe agora mais de mil tiras, além de quadrinhos, fanzines e boa parte do trabalho de Sica a partir de 2008 voltado à publicação.
Ajuda a formar o acervo a série Fim, que exemplifica a proposta tão enigmática quanto anárquica da produção do artista. “É um quadrinho depois do outro sem uma lógica linear. Completamente aberta e a busca pelo entendimento de quem lê acaba montando uma sequência lógica. Ainda sim é quadrinhos.”
A independênciaJá são 20 anos trabalhando na área - a primeira tira foi publicada no jornal Dando o Troco, com 15 anos, do Sindicato dos Bancários de Pelotas, e retratava o trabalhador dos bancos. Sica diz que desenha bastante, “na verdade”. Não necessariamente por demanda, mas sim pela vontade de desenhar, o que lhe obriga a estar sempre criando, por exemplo, séries para publicar em um fanzine ou vender a quem se interesse. “Desenho muito no impulso.” Tiras em jornal, por exemplo, ele continua publicando mesmo após certa perda de espaço por parte dos quadrinhos e charges nos veículos impressos. “Eu parei de publicar em jornal há mais de cinco anos, mas é um formato que seguiu dando certo na internet. Costumo publicar lá”, afirma.
A maior parte de sua produção, porém, é na área da ilustração, onde consegue mais dinheiro, embora a sua publicação autoral se espalhe por todos os segmentos do desenho. Sem nunca, e ele faz questão de ressaltar, se aproximar da publicidade. “É uma coisa que eu evito por uma questão de não querer e ser um trabalho difícil. Pessoas avaliando teu trabalho e querendo mudar o que tu tá fazendo. Eles dizem que querem teu traço, mas no fim querem outra coisa. Não vale a pena.”
Manter-se independente, aliás, é uma bandeira e ele aponta esse como sendo um caminho a ser traçado pelos quadrinistas hoje em dia, tendo em vista uma maior facilidade de se autopublicar. “Qualidade de conteúdo sempre teve, mas hoje tá mais fácil e tem surgido mais coisas.”
Chico Machado, que além de sócio da Casa Paralela é “ex”-quadrinista membro da antológica revista pelotense Kamikaze, dos anos 80, entra na conversa e concorda, fazendo uma abordagem histórica: “Era direto do original que se tiravam as cópias. Não tinha recurso de ampliação, era caro. A revolução tecnológica tá aí. Animação por exemplo, quem fazia naquela época era o Otto Guerra, hoje em dia qualquer um com um softwarezinho mete bala e tu vê uma produção muito legal, que naquela época ficava bloqueada porque não era acessível”. Segue Sica: “Essa coisa colaborativa é massa. Hoje em dia tu publica com gente do Rio, de Brasília por processo independente e simplesmente manda por e-mail a página. Antigamente tinha que mandar o original por fax, por correio, demorava um baita tempo pra chegar”. Finaliza Machado: “Se tem acesso ao que se produz no mundo inteiro. Nas décadas de 80, 70 era muito difícil chegar em produções de contracultura. A maioria achava que quadrinismo era super-herói, Pato Donald e Cebolinha. Isso abriu a cabeça da galera”.

*Matéria escrita para o Diário Popular

Thursday, August 14, 2014

Em Las Vegas, grupo de dança Trem do Sul descobriu sua apoteose

Após pequena temporada nos Estados Unidos, mais precisamente em Las Vegas e com rápida passagem por Miami, o grupo de dança hip hop Trem do Sul está de volta a Pelotas. O principal foi a participação no Campeonato Mundial de Hip Hop e a classificação até as quartas de final de um dos participantes na categoria de batalhas de locking, mas a experiência se expandiu para muito além.
“Ficamos muito emocionados porque era tudo muito diferente. Acima de tudo, participar do evento foi a coisa mais emocionante da minha vida”, começa Paulo Monteiro, coreógrafo. O grupo foi eliminado na etapa preliminar - muito pela falta de treinos, abdicados para que conseguissem o dinheiro para a viagem. Mas os comentários do júri, que considerou o Trem do Sul um dos melhores grupos de locking do Brasil, parecem ter recompensado. “Isso pra nós foi muito satisfatório. Além do primeiro lugar. Só estarmos lá já era ser campeões, porque a luta era essa. Tivemos de abdicar de várias coisas da nossa vida para correr atrás do dinheiro e representar o país e a cidade”, comenta Monteiro. Ele destaca que os apoios que receberam foram de suma importância. “A prefeitura de Pelotas, com as secretarias de Justiça Social e de Cultura, foi crucial. Entenderam que já estávamos há quase oito anos batalhando pra isso. Lojas Martins e Dana, Marcos Amir que fez a parte da papelada, o Antônio Rodrigues que cortou o cabelo do pessoal, o pedágio onde as pessoas nos ajudavam todos os dias. São varias coisas que nos deixaram emocionados”, cita.
Estrondando e bem recebidos nos EUA
O apoio e o respeito ao grupo continuou quando o Trem do Sul chegou aos Estados Unidos. Partindo da própria população. Monteiro lembra de um grande parceiro que surgiu de repente na viagem. Uma rapaz, que trabalhava com aluguel de carros particulares, passou por eles na rua. “Com um carro que eu pensei que só ia andar em outra vida”, comenta Monteiro. “Nos olhou uniformizados e perguntou o que estávamos fazendo lá. Falamos que estávamos participando do campeonato e ele nos deu uma carona de boa vontade até o hotel.” A partir daí, transporte não foi mais problema. O novo amigo se ofereceu para transportá-los para a competição e para outros lugares por um preço muito menor do que esperavam pagar de táxi.
No hotel onde se hospedaram, só alegria. Maiander Prestes, ainda com cara de guri, destaca, além da participação no campeonato, a estadia em Las Vegas. “Gostei muito principalmente por causa do calor. A gente tomava banho de piscina quase todos os dias, treinava no sol. Muito bom.”
No campeonato nada mudou. Nunca foram tratados de forma tão profissional, comenta Monteiro. “Nos valorizaram muito. Era uma organização, um luxo. Tudo o que a gente nunca teria se não tivesse batalhado para isso.” Preconceito? Nunca. “Independentemente da classe social todo mundo era tratado como um profissional da dança que estava lá competindo. Tinha todo um respeito.”
Elogios de quem sabe
Otávio Xavier, além de dançarino, desempenhou outra importante função na viagem: fluente em inglês, foi o responsável pela tradução daquilo que era falado aos demais e daquilo que os demais queriam dizer.
Foi ele quem contou a Tagner Mattos que o criador do locking o havia considerado muito bom. “Disse que ele nasceu pra isso”, conta. “Ele disse que éramos um dos grupos de locking preferidos dele. Pra nós, ter tirado primeiro ou segundo lugar não teria sido tão importante. Lutamos pra isso mesmo”, conta Xavier.
Mattos tem muito do que se orgulhar, além, claro, da participação e dos elogios: foi o primeiro brasileiro a avançar para as quartas de final do torneio na categoria batalha de locking, onde um dançarino disputa com outro. Da preliminar, com 28 participantes, apenas 16 passavam. “Só de ter entrado nesses já foi demais. Os melhores para que a competição ficasse em alto nível. Pra mim já foi uma coisa forte. Quando eles falaram aquelas coisas foi emocionante.” Ele ressalta também que nos Estados Unidos há uma valorização maior do hip hop. “Lá a dança de rua já tem seu espaço. É considerada arte.”
Representando os bairros
Nas camisetas vermelhas que os membros vestiram na apresentação estavam estampados os nomes de alguns dos bairros da periferia de Pelotas - além do Movimento Sem Terra. “Navega”, Getúlio Vargas, Pestano, entre outros além de uma dezena que eles também gostariam de ter homenageado. “Eu moro no Navegantes. Eu frequento o Dunas. Tem pessoas que trabalham no dia a dia e fazem com que a nossa cidade cresça, fique limpa. Os nomes dos bairros eram para essas pessoas”, explica Monteiro.

*Matéria escrita para o Diário Popular

Thursday, July 31, 2014

Agora é seleção brasileira de Hip Hop

O verde-e-amarelo da camisa que os membros do grupo de dança Trem do Sul usam não é por acaso. Desde 2006 na batalha, agora eles representarão o Brasil no Campeonato Mundial de Hip Hop, que acontece a partir de 3 de agosto em Las Vegas, nos Estados Unidos. Através do talento, disputarão o título com seleções de mais de 40 países.
O projeto começou em 2006 quando o então aluno Paulo Monteiro resolveu levar a proposta do grupo Piratas de Rua para a escola onde estudava, a Nossa Senhora dos Navegantes. A iniciativa cresceu, começou a ganhar prêmios e transformou-se no Trem do Sul. “Chegou num nível de dança que não era mais reconhecido como o projeto dos meninos carentes, aquela coisa da pena. Já estava sendo reconhecido pelo talento”, afirma ele, agora professor e coreógrafo do grupo.
Falta apoio
Essa é a terceira vez que o Trem do Sul tem a oportunidade de representar o país na competição - em todas se creditou após vencer o Sul-americano de Hip Hop, duas vezes na categoria versátil e uma na infantil. Porém, é a primeira vez que de fato farão essa representação. Isso porque nas duas chances anteriores a expectativa de ter o talento visto no mundo inteiro barrou na falta de apoio.
Monteiro conta que em ambas ocasiões o Trem do Sul se esvaziou. “As crianças pensam que não adianta dançar, aprender algo que não pode ser usado. Acham que a gente só quer manter elas enclausuradas dentro da aula. E na rua tem um monte de gente oferecendo o outro lado. Dizendo que ser do bem não tem apoio, que eles sim apoiam.”
Segundo ele, Pelotas ainda não acordou para a realidade de ter um grupo bicampeão sul-americano e que representará a Seleção Brasileira de hip hop. Monteiro diz que boa parte dos patrocínios que o Trem do Sul recebe é oriunda de empresas de outras cidades. “A gente conta também com a boa colaboração das pessoas da avenida Bento Gonçalves, onde o pessoal fica na sinaleira pedindo. Temos muitas empresas em Pelotas e poucas apoiam. Mas na hora de reclamar que o crime tá aumentando na cidade aí todo mundo reclama. Quando tem alguém decidido a não ir para esse lado, a fazer coisas boas, aí ninguém apoia”, afirma.
Monteiro diz que a falta de apoio também prejudica os treinamentos. “Ou tu treina, ou tu fica na sinaleira pedindo ou correndo atrás de empresas que patrocinem. As equipes dos outros países não precisam fazer isso, podem se dedicar só aos treinos.” Atualmente, o Trem do Sul conta, além do dinheiro que arrecada no sinal, com patrocínio da loja Danna, da Open Extreme de Santa Cruz do Sul e das lojas Martins, além da Secretaria de Cultura e da Secretaria de Igualdade Social. A prefeitura apoiou indicando possíveis patrocinadores.
Terceira geração
Ele lembra que o legado do grupo vai além dos dançarinos que lá estarão. “Daqui eles vão para o Estados Unidos e quando voltarem vão divulgar nos projetos sociais e vai incentivar a gurizada mais nova a dançar também” - vale lembrar que essa é a terceira geração de meninos campeã sul-americana pelo Trem do Sul. O coreógrafo, porém, rejeita o rótulo de “coitadinho”. Enfatiza que o grupo irá para Las Vegas por seus próprios méritos e talento. Porque são campeões.
Ítalo Santana, 17, faz parte da geração que conseguirá viajar. Ele enfatiza a importância de disputar uma competição mundial - e que tem transmissão ao vivo da MTV americana. Sobre o que espera, ele não consegue destacar algo em especial, tamanha a expectativa. “Só de estar participando já é uma coisa sensacional. É a realização do nosso sonho e a dança pode mudar totalmente as nossas vidas.”
Já Tagner Mattos, 22, começou como dançarino do Trem do Sul e agora é treinador. Assistente do coreógrafo Paulo Monteiro. Quando dançava, não teve a oportunidade de participar, mas se sente igualmente ou ainda mais satisfeito vendo os mais novos alcançarem o objetivo. “É uma batalha que a gente vem há anos correndo atrás. Sempre no final a gente acaba sendo barrado porque não tem apoio. Dessa vez falta quase nada e estaremos lá. Pra mim é ainda mais incrível porque eu tô vendo. O que eles tão fazendo hoje, que é ir lá e dançar eu tentei e não consegui. O fato de ver eles conseguirem isso é muito mais importante porque não consegui, mas vi alguém conseguir. É ver que não é impossível.” Mattos estará lá. Não para dançar, mas para dar apoiar à equipe. “Vou para gritar a incentivar a galera”, conta.
A coreografia
O campeonato tem uma fase prévia, de 1º a 3 de agosto onde será escolhido o grupo que representará os Estados Unidos. O Trem do Sul (Seleção Brasileira) desembarca em Las Vegas no dia 3, quando se inicia a etapa mundial. O pelotenses focarão a coreografia no locking, estilo da década de 1970, mas sem se desvencilhar do hip hop atual. “Tu tens que apresentar na coreografia três estilos. Vamos com o break dance, o locking e o hip hop dance”, explica o coreógrafo Paulo Monteiro.
Serão dois minutos de apresentação, onde o grupo mostrará o dia a dia do trabalhador. “Muitas vezes a gente tá andando na rua e vê o pessoal que trabalha no caminhão do lixo. Eles escutam uma música e, mesmo no sufoco de tentar deixar a cidade limpa, ainda dançam, brincam. Muitas vezes a gente passa por uma empregada doméstica que está ouvindo uma música e tá dançando mesmo tendo aquele serviço difícil.”

>As empresas que desejarem patrocinar o Trem do Sul - a viagem está garantida, mas falta verba para manterem-se em Las Vegas - podem entrar em contato pelo número (53) 8378-5906 ou pelo e-mail tremdosulfreestyle@yahoo.com.br<

*Matéria escrita para o Diário Popular