O barulho da lata de tinta é praticamente uma extensão do sample. Dita o ritmo da dança e é semelhante ao quique da bola. Pudera. O hip hop, lido como manifestação cultural dos guetos, é mais do que a soma de elementos como o grafite, o rap, o break dance e o basquete. Utilizando as ruas como cenário em comum. Juntar todas essas manifestações e valorizá-las é o objetivo da Semana do Hip Hop, que invadiráPelotas a partir desta segunda-feira (20).
A iniciativa surgiu através da reivindicação do rapper Gagui Idv, que a levou para a Câmara de Vereadores através do vereador Ivan Duarte em 2011. Na ocasião foi criada a lei 5.845, voltada à criação da Semana Hip Hop de Pelotas.
Desde então a associação, surgida pouco antes, toca o projeto e faz trabalhos de resgate de artista e de pessoas que estão afundadas nas drogas, através de oficinas e workshops em escolas e entidades comunitárias - às vezes nas próprias ruas dos bairros. "É um trabalho de formiguinha. A gente faz e através disso vai resgatando essas pessoas, trazendo elas para a volta e em seguida as instrumentalizando. É tornar visível uma pessoa que estava na invisibilidade", comenta o coordenador da associação, Vagner Matos.
Segundo ele, o hip hop tem o poder de modificar totalmente a vida de uma pessoa - é um mecanismo de transformação. Qualquer um dos elementos, música, dança, esporte e grafite, é definitivo. "É a transformação através da cultura. Não é só cantar, fazer o grafite, dançar. Existe toda uma metodologia, uma narrativa, uma discussão político-social que o hip hop leva. Denuncia as políticas públicas, sociais, a criminalidade e a violência. É uma ferramenta que, além de transformar, informa."
É arte e é mensagem
O muro está em branco. O motivo, a pouca utilização do espaço - ou a utilização de modo que, acredita, não é da melhor forma. É um desperdício mantê-lo assim, virgem. Uma cor não só não faz mal como fará bem. Não só para si, mas para quem passar por ali.
O muro está em branco. O motivo, a pouca utilização do espaço - ou a utilização de modo que, acredita, não é da melhor forma. É um desperdício mantê-lo assim, virgem. Uma cor não só não faz mal como fará bem. Não só para si, mas para quem passar por ali.
Gabriel Alves, ou Gas, começou a grafitar aos 12 anos. Tem no antebraço tatuagem com o rosto do rapper Notorious B.I.G. Natural de Rio Grande, agora mora em Pelotas e busca se inserir em um mercado que vê ainda restrito por aqui. Segundo ele, grande parte dos grafiteiros se vê obrigada a praticar outra atividade para se sustentar. "Tenho uma subvida que é o que me traz comida e isso aqui serve para me fazer feliz", afirma.. Ele diz inclusive que alguns colegas viraram tatuadores para seguir fazendo o que gostam de maneira mais rentável. Gas conta que até consegue ganhar algum dinheiro com o grafite, mas gasta tudo com o material, de custo elevado.
Gas atualmente ministra oficina de grafite em uma escola. Lá, lida com a questão histórica e prática da arte, bem como o modo com que ela se inseriu na sociedade, "o jeito com que a população lidava com ele de forma criminosa, a ponto de prefeituras criarem projetos para limpá-los", afirma, referindo-se à imagem que o grafite luta para se afastar, de se limitar à sujeira de uma cidade.
Tentar discutir o papel dele hoje em dia é o objetivo de uma das palestras da Semana do Hip Hop, baseada na questão do grafite e da pichação. Quem a ministrará é a professora Celia Constenla. "Abordaremos as diferentes formas de intervenção urbana, como elas surgiram, quais as diferenças entre elas e a importância da educação ambiental e do cuidado com o patrimônio público de nossa cidade", conta.
Diferenças e semelhanças
Segundo ela, a diferença está em a pichação ser uma provocação para as autoridades e demarcação de território "sem qualquer pretensão artística, caracterizada pelo ato de escrever frases ou assinaturas em muros, prédios, monumentos e vias públicas, sendo um ato de vandalismo", enquanto o grafite "se caracteriza pela qualidade técnica que envolve planejamento detalhado, frases poéticas e desenhos mais elaborados, feitos com estêncil ou a mão livre, sendo realizado com o objetivo de valorizar o patrimônio."
Segundo ela, a diferença está em a pichação ser uma provocação para as autoridades e demarcação de território "sem qualquer pretensão artística, caracterizada pelo ato de escrever frases ou assinaturas em muros, prédios, monumentos e vias públicas, sendo um ato de vandalismo", enquanto o grafite "se caracteriza pela qualidade técnica que envolve planejamento detalhado, frases poéticas e desenhos mais elaborados, feitos com estêncil ou a mão livre, sendo realizado com o objetivo de valorizar o patrimônio."
Já Gas não vê exatamente uma diferença entre os dois em relação à estética: está mais relacionada à permissão ou não da manifestação. "Grande parte dos grafites está bastante relacionada com a pichação. Normalmente o que a gente vê de pichação são discursos de ordem. O grafite começou assim também. É a mesma coisa só que foi permitido", diz, salientando que usa como regra não grafitar - sem autorização - casas de pessoas de classe baixa. "Este local aqui (um terreno composto por grama alta, algumas paredes, diversos pacotes de preservativo abertos e variados utensílios para uso de drogas), por exemplo. É abandonado, ninguém habita. É usado pro mal, inclusive. Se fossem me cobrar por pintar aqui, teriam que cobrar os outros que vêm aqui e se drogam também."
Célia lembra que, até 2011, grafite e pichação eram a mesma coisa aos olhos da lei: criminalizados da mesma forma. Segundo ela, há preconceito em relação ao primeiro e a solução passa pela conscientização nas escolas de que pichação trata-se de um crime ambiental e contra o patrimônio.
Das quadras para o céu aberto
Os movimentos confundem - e que bom que seja assim: é dança ou é esporte? Por que não os dois? Esse é o conceito do basquete de rua, braço mais esportivo do hip hop. Nessa modalidade são deixadas de lado características essenciais da versão de quadra. Se vai a importância principal em relação aos pontos e entra a brincadeira através de manobras. Chega a ser mais artístico do que de fato um esporte, comenta Guilherme Tavares. "Em jogos tu vês muita técnica. Na modalidade street isso é um pouco abandonado pelo fato de passar mais a ideia de brincadeira. A moral é enganar o outro na quadra até fazer ponto", explica.
Os movimentos confundem - e que bom que seja assim: é dança ou é esporte? Por que não os dois? Esse é o conceito do basquete de rua, braço mais esportivo do hip hop. Nessa modalidade são deixadas de lado características essenciais da versão de quadra. Se vai a importância principal em relação aos pontos e entra a brincadeira através de manobras. Chega a ser mais artístico do que de fato um esporte, comenta Guilherme Tavares. "Em jogos tu vês muita técnica. Na modalidade street isso é um pouco abandonado pelo fato de passar mais a ideia de brincadeira. A moral é enganar o outro na quadra até fazer ponto", explica.
Michel Knuth lembra a semelhança com o break dance. "Os movimentos em quadra são parecidos e quem dança tem bem mais facilidade para jogar." Eles exemplificam com uma oficina que ministraram em 2009 ligada a Central Única das Favelas (Cufa). O objetivo era realizar malabarismos com a bola. Porém, um participante resolveu utilizar o break junto e colocou uma música. "Mostrou a ligação entre a música hip hop, break dance e basquete", comenta Tavares. Ele lembra também que o basquete de rua nasceu do fato de a população das periferias não ter acesso a quadras bem equipadas para o desempenho do esporte.
Nas rimas
"Tem que trabalhar bastante ainda." Com certeza na voz, assim fala Filipe Fontoura, o F.I.L.L., rapper pelotense que recentemente lançou Três pintas em minha mente, disco que aborda sua "tripolaridade". Sua fala tem a ver com o momento vivido pelo rap na cidade: frutífero, com boa aceitação da população, mas em momento algum permitindo baixar a guarda. "Tem que trabalhar a imagem ainda. Se profissionalizar, buscar a autogestão.
"Tem que trabalhar bastante ainda." Com certeza na voz, assim fala Filipe Fontoura, o F.I.L.L., rapper pelotense que recentemente lançou Três pintas em minha mente, disco que aborda sua "tripolaridade". Sua fala tem a ver com o momento vivido pelo rap na cidade: frutífero, com boa aceitação da população, mas em momento algum permitindo baixar a guarda. "Tem que trabalhar a imagem ainda. Se profissionalizar, buscar a autogestão.
F.I.L.L. afirma que, apesar de estar ouvindo bastante, Pelotas já ouviu mais sua própria cena, a qual considera mais forte e talentosa do que a de Porto Alegre. Cita outros rappers como Zudizilla (Luz), Pok Sombra (Aonde vou chegar) e Garcez DL (NaturezAÇÃO). "A cidade já ouviu mais, mas tem reconhecido bastante nosso trabalho. Já lá em cima estão nos escutando", afirma. Recentemente, KL Jay, membro dos Racionais Mc'S citou Zudizilla como um dos principais nomes da nova geração do rap.
Representante de outra leva - faz rap desde 1990 - , Ligado Branco Radical começou com seu grupo Mc'S Radicais, na Guabiroba. "Sou de uma época em que o rap falava das quebradas, da periferia, influenciava o jovem a se informar e não fazer parte do sistema. Meu rap é de resgate, de transformação", diz, afirmando acreditar na revolução que o rap fez em sua vida, o deixando longe do álcool e das drogas.
No passo da dança
A dança, quando o assunto é hip hop, não foge à regra: é nas ruas que se desenvolve de forma mais natural, livre. É com técnica aliada à liberdade e à brincadeira nos passos. É o break dance e a dança de rua, que através do Trem do Sul, tem em Pelotas grande força.
A dança, quando o assunto é hip hop, não foge à regra: é nas ruas que se desenvolve de forma mais natural, livre. É com técnica aliada à liberdade e à brincadeira nos passos. É o break dance e a dança de rua, que através do Trem do Sul, tem em Pelotas grande força.
O grupo formou-se em 2006, quando Paulo Monteiro resolveu levar para a sua escola, a Nossa Senhora dos Navegantes, a proposta do Piratas de Rua, que representava o break dance na cidade à época. A iniciativa cresceu e Monteiro tornou-se o coreógrafo oficial de um grupo que passou a batalhar de igual para igual com as principais companhias do estilo por títulos em campeonatos sul-americanos, sempre com o objetivo principal de mostrar ser possível vencer na periferia através do talento.
A mais recente vitória foi a participação no Campeonato Mundial de Hip Hop, em Las Vegas, onde representaram o Brasil. Após intensa luta para conseguir apoio para viajarem, os membros lá estiveram e receberam elogios. Tagner Mattos, que ministrará na Semana do Hip Hop uma oficina de locking, foi elogiado pelo criador do estilo e tornou-se o primeiro brasileiro a avançar para as quartas de final na categoria.
Um zine do gueto
Do final dos anos 1990 até o início dos 2000, todas estas vertentes do Hip Hop, principalmente suas versões pelotenses, estiveram presentes e encontraram espaço para divulgação e debate em uma publicação feita por quem vive a manifestação cultural diariamente. Foi em 1998 que Jair Brown criou o zine Batida de rua, com o objetivo de espraiar para outros lugares o que se fazia em relação ao hip hop na cidade.
Do final dos anos 1990 até o início dos 2000, todas estas vertentes do Hip Hop, principalmente suas versões pelotenses, estiveram presentes e encontraram espaço para divulgação e debate em uma publicação feita por quem vive a manifestação cultural diariamente. Foi em 1998 que Jair Brown criou o zine Batida de rua, com o objetivo de espraiar para outros lugares o que se fazia em relação ao hip hop na cidade.
Pegou então outros fanzines para se basear, chamou Elio Stolz e decidiu lançar o seu. O início foi complicado, como toda produção independente: Brown não sabia muito bem como imprimir e o custo era muito elevado para uma iniciativa sem muitos apoios. "O primeiro fui eu que escrevi inteiro, mas depois fui agregando pessoas que se identificassem com a proposta para darem sua contribuição", conta.
Brown explica que Batida de rua foi criado com a intenção de destacar Pelotas. "Tínhamos um monte de grupos de rap, dança e grafite, mas muita gente achava que na cidade só tinha gaudério", diz, contando que passou a mandá-lo para outros lugares através de trocas com outras pessoas do país inteiro. "Até hoje tem gente que ainda me pede", conta.
E ele pretende voltar: a ideia era retornar com o Batida de rua já este ano, mas outros projetos impediram. Para 2015 deve acontecer. "Sinto que está fazendo falta pro pessoal do hip hop, tem muita gente hoje consumindo a 'cultura bunda', que não ensina nada. A molecada podia estar aprendendo algo cultural e se perde", comenta.
*Matéria escrita para o Diário Popular
*Matéria escrita para o Diário Popular
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