Era uma vez um menino. Era uma vez um menino que sabia voar.
Não necessariamente era um menino que queria
voar. Ele só sabia. Também não era um voar estilo Super-Homem, com uma capa
imponente, tampouco estilo anjo, com asas. Ele só sabia.
O menino usava esse “superpoder” quando julgava necessário –
dentro do seu entendimento de necessário, coisa que vai de pessoa pra pessoa,
de cachorro pra cachorro, de margarida pra margarida. Ele julgava necessário voar
quando se sentia ameaçado. O que não acontecia lá muito, criança tranquila que
era. Veja você que era exatamente essa tranquilidade que o fazia ser
considerado ameaça e, por consequência, se sentir ameaçado. Os demais meninos,
ao o verem daquela forma, não entendiam. Como alguém conseguia segurar tanta
paz nas costas? O menino jogava bolinha de gude, claro, mas caso perdia – e isto
acontecia bastante – não se importava lá muito. Também não tentava tirar
proveito dos meninos menos habilidosos, chamando-os para duelos apenas para
ganhar suas bolinhas. “Para que irei excluí-los da brincadeira?”, dizia. E era
aí que os meninos partiam para cima. E era aí que o menino voava. Voava direto
para a padaria ao lado do colégio e lá ficava, comendo bomba de chocolate.
Mais pra frente, quando o menino já amava as meninas, a sua
tranquilidade continuava a lhe trazer problemas. Não que vivesse sempre em banho-maria.
Era um menino de bastante atitude e borogodó. O que incomodava as meninas era a
tranquilidade dele perante a sociedade. Certa vez perdeu uma namorada por ter
lhe tascado um beijo apaixonado dentro de um elevador lotado. Outra por não ter
lhe tascado um beijo apaixonado dentro de um elevador lotado. Mas não se
importava muito. Quando um relacionamento começava a não valer mais a pena o
menino simplesmente levantava voo. Voava pra casa e lá ficava até que desse
vontade de sair de novo.
Não apenas no que dizia respeito ao lado afetivo, o menino
cumpria este ritual em tudo na vida. De conversas triviais, onde para os amigos
sempre foi uma grande dúvida se era a embriaguez que já estava alta ou se um
amigo havia levantado voo ali diante de seus olhos, até no âmbito profissional.
Não conseguia parar em emprego algum, pois assim que as tarefas não lhe eram
mais interessantes ele levantava voo. Ali, de terno mesmo.
Até que ficou velho. E aí ficou mais velho, até que, tranquilamente,
levantou voo em direção a... Na verdade
desta última vez não sei para onde o menino foi. Sei que foi. Mas eu também
podia estar embriagado.