- Você passou a segunda demão na parede da sala?
- Tu tá falando “você”? Não faz duas semanas que a gente tá
no Rio.
- Ai, não enche. Vê se não vai estragar essa parede, pelo
amor de Deus, sabe-se lá quando a gente vai ter dinheiro pra pintar de novo.
- Relaxa. Esse é o primeiro momento em duas semanas que a
gente sentou pra fazer nada. Aproveita que tá tudo nos conformes. Relaxa.
- Relaxar... Não sei como tu consegue. O mundo inteiro
desmoronando e tu nesse clima novela das seis.
- Depois de passar duas semanas de sufoco após vir pra
cidade grande sem certeza alguma, conseguir um emprego que vai dar pro gasto
nos próximos meses sem atrapalhar nossos estudos, organizar uma casa nova e
pintar uma sala inteira, eu me permito viver num clima novela das seis.
- Como se fosse só nesses casos...
- A partir do momento em que essa conversa deixar de ser
sobre a parede da sala eu vou começar a dormir.
- Então tu achas que tá tudo perfeito pra gente? Acha que a
vida vai ser moleza a partir de agora?
- É claro que não. Eu só tô aproveitando uma horinha de paz
antes de me desesperar de novo.
- Não é melhor levantar e fazer tudo logo?
- Não.
- Então tá. Vou ficar sentada aqui também. Totalmente
relaxada, esse mundo é uma beleza mesmo, acho que vou pegar uma revista, um
pacote de biscoito e tomar um suco.
- Tu tá relaxando do jeito errado. E eu comi o último pacote
de bolacha.
- EU NÃO ACREDITO QUE VOCÊ COMEU O ÚLTIMO PACOTE DE BOLACHA.
- Relaxa, eu compro mais amanhã. Deixa eu te ensinar a fazer
isso da maneira certa. Sentar na sacada
com vista para uma construção: Sim. Encucar porque eu comi o último pacote de
bolacha: Não.
- COM QUE DINHEIRO TU VAIS COMPRAR “MAIS”?
- Relaxa. Vamos fazer assim. A gente se esparrama na cama,
liga o ventilador, dorme por uma horinhazinha só e depois senta pra fazer as
contas pra conseguir comprar mais bolacha amanhã. Pode ser?
- Que cama?! Tu não percebeu que a gente tá dormindo no
colchão de solteiro que o teu amigo emprestou? A gente só vai poder comprar uma
cama de verdade semana que vem.
- “Cama” pra mim não é o objeto cama. É um lugar pra
descansar. Se fossem folhas de jornal eles seriam “cama” pra mim.
- Até parece que eu vou conseguir dormir, mas tá.
- Vai, sim. Ninguém resiste ao meu cafuné. É a música da
Jigglypuff dos cafunés.
- Tu acha que vai dar certo?
- Eu juro que passei a segunda demão na parede. Dorme, por
favor.
- Às vezes só o esforço de fazer tudo certo na hora de
pintar a parede não adianta.
- Ok. Tu tá falando “da gente”, do fato de a gente ter se mudado
pra cá ou simplesmente da parede?
- Eu tava falando simplesmente da parede. Pensei que tu não
querias falar sobre “a gente” ou “a gente ter se mudado pra cá”. Mas já que o
assunto foi tocado...
- Sim, talvez e sim.
- O talvez é “a gente”?
- Não, o talvez é “a gente ter se mudado pra cá”.
- Tu tens mais confiança na pintura da parede do que no fato
de a gente ter se mudado pra cá?
- Não é questão de ter mais confiança. É mais uma coisa de
navegar é preciso, viver não é preciso. Eu li uns tutoriais na internet e saquei
como se pinta uma parede. Não existe um tutorial online que ensine a vencer na
cidade grande. Quer dizer, existe. Na verdade uns quantos, talvez bem mais do
que ensinando a pintar parede. Mas o que eu quero dizer é que existem vários
caminhos para o que a gente quer em termos de “a gente ter se mudado pra cá”.
Pode ser que a gente tenha vindo pelo certo. Pode ser que a gente precise de
uns atalhos. Pode ser que a gente erre o caminho e tenha que recalcular a rota.
Pode ser que a gente tenha que recalcular a rota de novo. E de novo. Mas de
demão em demão a gente vai levando.
- ZZZZzzzzzZzzZZZZZZZZZZZZZzzzzzZZZZ
- Ok, dormiu. Agora é a hora de passar essa segunda demão.