Wednesday, February 20, 2013

A gente ter se mudado pra cá


- Você passou a segunda demão na parede da sala?
- Tu tá falando “você”? Não faz duas semanas que a gente tá no Rio.
- Ai, não enche. Vê se não vai estragar essa parede, pelo amor de Deus, sabe-se lá quando a gente vai ter dinheiro pra pintar de novo.
- Relaxa. Esse é o primeiro momento em duas semanas que a gente sentou pra fazer nada. Aproveita que tá tudo nos conformes. Relaxa.
- Relaxar... Não sei como tu consegue. O mundo inteiro desmoronando e tu nesse clima novela das seis.
- Depois de passar duas semanas de sufoco após vir pra cidade grande sem certeza alguma, conseguir um emprego que vai dar pro gasto nos próximos meses sem atrapalhar nossos estudos, organizar uma casa nova e pintar uma sala inteira, eu me permito viver num clima novela das seis.
- Como se fosse só nesses casos...
- A partir do momento em que essa conversa deixar de ser sobre a parede da sala eu vou começar a dormir.
- Então tu achas que tá tudo perfeito pra gente? Acha que a vida vai ser moleza a partir de agora?
- É claro que não. Eu só tô aproveitando uma horinha de paz antes de me desesperar de novo.
- Não é melhor levantar e fazer tudo logo?
- Não.
- Então tá. Vou ficar sentada aqui também. Totalmente relaxada, esse mundo é uma beleza mesmo, acho que vou pegar uma revista, um pacote de biscoito e tomar um suco.
- Tu tá relaxando do jeito errado. E eu comi o último pacote de bolacha.
- EU NÃO ACREDITO QUE VOCÊ COMEU O ÚLTIMO PACOTE DE BOLACHA.
- Relaxa, eu compro mais amanhã. Deixa eu te ensinar a fazer isso da maneira certa.  Sentar na sacada com vista para uma construção: Sim. Encucar porque eu comi o último pacote de bolacha: Não.
- COM QUE DINHEIRO TU VAIS COMPRAR “MAIS”?
- Relaxa. Vamos fazer assim. A gente se esparrama na cama, liga o ventilador, dorme por uma horinhazinha só e depois senta pra fazer as contas pra conseguir comprar mais bolacha amanhã. Pode ser?
- Que cama?! Tu não percebeu que a gente tá dormindo no colchão de solteiro que o teu amigo emprestou? A gente só vai poder comprar uma cama de verdade semana que vem.
- “Cama” pra mim não é o objeto cama. É um lugar pra descansar. Se fossem folhas de jornal eles seriam “cama” pra mim.  
- Até parece que eu vou conseguir dormir, mas tá.
- Vai, sim. Ninguém resiste ao meu cafuné. É a música da Jigglypuff dos cafunés.
- Tu acha que vai dar certo?
- Eu juro que passei a segunda demão na parede. Dorme, por favor.
- Às vezes só o esforço de fazer tudo certo na hora de pintar a parede não adianta.
- Ok. Tu tá falando “da gente”, do fato de a gente ter se mudado pra cá ou simplesmente da parede?
- Eu tava falando simplesmente da parede. Pensei que tu não querias falar sobre “a gente” ou “a gente ter se mudado pra cá”. Mas já que o assunto foi tocado...
- Sim, talvez e sim.
- O talvez é “a gente”?
- Não, o talvez é “a gente ter se mudado pra cá”.
- Tu tens mais confiança na pintura da parede do que no fato de a gente ter se mudado pra cá?
- Não é questão de ter mais confiança. É mais uma coisa de navegar é preciso, viver não é preciso. Eu li uns tutoriais na internet e saquei como se pinta uma parede. Não existe um tutorial online que ensine a vencer na cidade grande. Quer dizer, existe. Na verdade uns quantos, talvez bem mais do que ensinando a pintar parede. Mas o que eu quero dizer é que existem vários caminhos para o que a gente quer em termos de “a gente ter se mudado pra cá”. Pode ser que a gente tenha vindo pelo certo. Pode ser que a gente precise de uns atalhos. Pode ser que a gente erre o caminho e tenha que recalcular a rota. Pode ser que a gente tenha que recalcular a rota de novo. E de novo. Mas de demão em demão a gente vai levando.
- ZZZZzzzzzZzzZZZZZZZZZZZZZzzzzzZZZZ
- Ok, dormiu. Agora é a hora de passar essa segunda demão.



Monday, February 18, 2013

Um inseto pousou em meu ombro


Não sei direito qual, é um daqueles que entram pela janela do quarto nas madrugadas de verão e quando a gente acorda eles não estão mais lá.  Mas bem maior. Tem grandes olhos pretos e o corpo meio alaranjado na parte de baixo e uma coisa meio cinza em cima.
Passei a mão no ombro para tirá-lo.
O bicho se assustou e saiu voando.
Direto para o ventilador, que friamente o corta ao meio. Uma parte cai no chão e a outra fica presa nas grades.
Morte na hora, penso eu. E fico alguns segundos parado olhando a cena ao mesmo tempo em que tento processá-la. Tudo isso aconteceu em questão de três segundos. Um, vejo o bicho no meu ombro. Dois, tiro. Três, ele é partido ao meio. Como a morte é rápida, meu Deus do céu. Como a vida é curta, meu Deus do céu. De um segundo para outro todo mundo puft, seja humano ou inseto que só especialistas em inseto sabem o nome.
Passados alguns segundos a parte do bicho que caiu no chão começa a se mexer. Felicidade, penso eu. Só abrir a janela, soltá-lo no mundo e ir dormir com o ventilador me refrescando. Mas o bicho não consegue voar. Tenta com todas as suas forças, se debate incessantemente, mas as leis da aerodinâmica o condenaram a não sair mais do chão.  E o ventilador girando.
O inseto ali, me olhando com aqueles olhos pretos e gigantes que se dividem em ter medo e verem em mim uma oportunidade de salvação. Tenho que salvá-lo, penso. Surge a ideia de amarrar o restante que ficou preso nas grades ao pedaço que bate asas, pois parece realmente ser um caso de falta de peso, mas obviamente não sei como proceder, então desisto. E se esgotam as ideias para salvar o bicho que fora cortado ao meio porque deixei a janela aberta por causa do calor. E o bicho aqui, do meu lado, tirando forças das forças das forças para tentar voar, mas começando a cair a ficha de que não conseguirá.
Que morrerá nesse lugar estranho.
Que nunca mais verá os filhos, órfãos e sem ter o que comer a partir de agora.
O mais velho terá de sair da faculdade para trabalhar, até que um dia será cortado ao meio por um objeto cortador não identificado.
Tento descobrir na internet de que inseto se trata para descobrir o quão ligados à família eles são.
Tenta mais uma vez sem sucesso alçar voo.
Começo a pensar em dar-lhe o golpe de misericórdia. Acabar com seu sofrimento e ir para a cama descansar, pois amanhã será um longo e cansativo dia. Porém, lembro que eu sou eu e que nunca teria coragem para tal. Você leitor também não teria. A gente diz que teria, mas na hora dá para trás. Óbvio que é a melhor opção. Mas não é uma opção. Enfiar uma estaca no peito do bicho e dormir como se nada tivesse acontecido não está nos planos. Lembro do recente caso em que minha cadela estava no último estágio de um câncer que iniciou nas mamas e em questão de dias se espalhou para os pulmões. Ela foi levada ao veterinário já com a possibilidade da eutanásia na mesa, mas o próprio doutor via o processo com resistência. Talvez pelo mesmo pensamento que me corrói agora: Sou contra porque sou eu quem irá proceder.  Na verdade, este foi o principal desempate entre seguir a carreira de jornalista e de médico veterinário. Ver bicho sofrendo pelo resto da vida não estava nos meus planos e eu respeito profundamente a profissão muito também por essa frieza necessária que eu, escritor, não tenho e por isso escrevo ao invés de tentar fazer algo pelo inseto.
Já faz duas horas desde que o bicho foi cortado pelo ventilador. Acho que vou dormir e esperar para ver amanhã o que se sucedeu durante o restante da madrugada. Como sempre na vida.
Pensar que meia hora antes do acontecido eu havia cogitado seriamente ir dormir. Fecharia a janela e nada disso teria acontecido. 

Sunday, February 10, 2013

O gato

Você chega em casa cansado do trabalho. O mundo inteiro caiu em suas costas no dia de hoje e só o que você quer é atirar a chave em qualquer canto, se atirar no sofá e ver TV. E quando eu digo “ver TV” é ver TV. Ver novela, ver alguma série qualquer. Você enfim deita no sofá. Decide não comer nada, está cansado demais para sentir fome. É só ver TV e ir deitar.
Aí vem o gato.
O gato vem, pisa em cima de você, procura um lugar fofo em seu peito magro e, quando finalmente acha, deita.
E você fica naquela posição por horas.
Está cansado, não quer mais ver TV, mas como que vai tirar o gato dali? Além de atrapalhar o conforto do bichano, ele está lhe dando calor, querendo ele ou não fazer isso. “Ele vai me odiar se eu sair daqui agora”. Humanos pensam isso de gatos. Acham que vão perdê-los para sempre se decidirem mover-se para maior conforto.  Aí ficam ali engessados. Tentam se mover bruscamente numa tentativa de passar para o gato a responsabilidade do desconforto, mas a verdade é que o gato não está se importando muito. O gato dorme em cima do seu nariz, se for necessário. Ele quer é dormir. “Ele quer dormir junto de mim”, pensa você, ingênuo ser humano lendo essa frase. Pode até ser. Mas também se não fosse essa coisa de o gato querer ficar encostado na gente, a gente nem ia dar bola pro gato. Porque o gato gosta do ser humano. Quer ele ali, paradinho, só com o corpo encostado no seu. Mas aí, se o ser humano, num ato de pura brutalidade resolver trazer o gato mais pra perto de si, aí ferrou. “Aí babaus”, como diria um amigo meu.
O bicho vai embora, você está o sufocando.
Mas isso tudo é só você pensando, enquanto permanece imóvel no sofá para não atrapalhar a equação perfeita do conforto do gato.  Você pensa pensa pensa pensa pensa e, quando volta a si, já está passando o Corujão e a fome venceu o cansaço. Você resolve ir na cozinha fazer um sanduíche, mas, na hora em que iria se levantar, lembra que o gato está ali. E você não consegue tirar o gato dali. O gato é mais forte que a fome, que o cansaço, que você, e que tudo isso junto. E aí já passou Corujão, tá começando Telecurso 2000, você está podre de sono, mas não pode se mover até a cama porque o gato segue lá, torturando você com todo aquele tonemaíismo.
E isso piora quando o gato é daqueles mais ariscos. Daqueles que não costumam aceitar um colo com facilidade. Uma oportunidade de fazer carinho num desses é como pasta de dente: Você aproveita até o final, vai enrolando, enrolando e, se precisar, ainda corta a ponta no final para durar mais.
É claro que, de repente, depois de cinco horas de sono no seu peito, o gato resolve acordar e sai de cima.
Aí cabe a você ficar chorando pela ausência do gato ou correr pra cama antes que ele volte.



Tuesday, February 05, 2013

Maria do Céu




O nariz arrebitado o sinal em cima da boca o timbre rouco carinhoso manhoso e pedindo carinho o ponto. assim. de repente. Dando a. Cadência.
Céus, a cadência.
Céus, o toque nos cabelos.
Céus, a boca.
Céus, o Brasil.
Céus, o Brasil falando francês brasileiro.
Céus, a enrugada no rosto.
Céus, a roda.
Céus, o pra lá e pra cá.
Céus, a mordida na fruta.
Céus, o aAa.