Thursday, December 26, 2013
Você aparece e aí tem muito você. Tem você líquida, tem você sólida, tem você na televisão, tem você de repente, tem você o tempo todo, tem você no que faço, tem você no que não faço e esse tanto de você é tanta gente que se transforma em nós e aí somos nós líquidos, nós sólidos, somos nós de repente, nós o tempo todo e tudo parece uma tarde de sol na Secult.
Mas você é leve, é incrível como você é leve, nos movimentos, na maneira de pensar, em como me olha, mas você é leve e como venta aqui na Secult, eu fico toda hora pensando que o vento vai levar para longe tudo o que a gente demorou pra construir e não me seguro e convido você para vir aqui e você vem, mas você é leve, é incrível como você é leve e o vento leva você de novo e aí você desaparece, mas segue tendo muito você.
Thursday, December 05, 2013
Quando
Quando eu chego na Secult começa
o vento e as folhas se mexem uniformemente. Quando amei São Paulo o amor estava
em Pelotas. Quando amei Pelotas o amor estava no avião. Quando amei no céu o
amor estava dentro de casa. Quando a casa era em casa a minha casa era na rua.
Quando a rua era a casa a minha rua era dentro de casa. Quando fui dormir cedo ela ficou online até
mais tarde. Quando fui dormir tarde ela estava com outro. Quando criei asas
caí. Quando caí criei asas. Quando criei queda caíram asas. Quando danço
enrosco as pernas. Quando enrosco as pernas as pessoas riem. Quando as pessoas
riem eu danço. Quando abri os olhos claridão. Quando claridão assustei. Quando
assustei escuro. Quando escuro claridão. Quando claridão me assusto. Quando eu estava pra besteira ela conversou
sério. Quando eu estava triste ela conversou besteira. Quando eu sério besteira
ela estava. Quando na Lua flutuei. Quando flutuei fechei os olhos. Quando
fechei os olhos acordei. Quando acordei voltei à Terra. Quando voltei à Terra
sumi. Quando sumi fui à Lua. Quando o
telefone tocou estava no silencioso. Quando não tocou era preciso tocar. Quando
precisava gastar dinheiro com carteira de motorista gastei com viagem. Quando
na viagem era pra ter ido de táxi resolvi ir de ônibus. Quando no ônibus
resolvi descer um ponto depois do lugar porque parecia mais perto no GPS.
Quando no GPS tive de recalcular rota. Quando recalcular rota sempre pegar o
caminho mais curto. Quando caminho mais curto sempre ir mais devagar. Quando ir
mais devagar cuidado para não parar. Quando parar pare.
Tuesday, November 19, 2013
Isabel
isabel, você foi a primeira coisa que eu vi ao adentrar o
largo das artes que eu encontrei por um grande acaso pois já tinha desistido de
ir ao evento da bolha por ter preferido ver uma peça que parecia interessante e
tinha uma atriz bonita, mas saiba você que não deu tempo de ver a peça porque
um amigo meu de pelotas estava no rio também e me chamou pra ir à praia jogar
conversa fora e procurar mulheres de mochila e quando eu fui ver já eram quase
três e quinze e a peça começava às dezesseis e eu estava em ipanema e a peça
era no centro cultural banco do brasil aí resolvi pegar um taxi e, ai meu deus,
aquele táxi andou cento e quarenta quilômetros por hora, não, não tô
exagerando, eu olhei e fingi apertar o freio com meus pés como que dando uma
indireta pro taxista diminuir um pouco, mas ele não entendeu, muito pelo contrário,
começou a buzinar para os ônibus querendo se atravessar na frente deles, eu
pensei que talvez pudesse morrer ali e a minha vida melhoraria muito se eu
morresse, mas mesmo assim eu ficaria muito triste caso isso acontecesse e então
cheguei ao lugar da peça, paguei o taxista e nem dei tchau em sinal de protesto
ao fato de ele quase ter tirado a minha vida umas dez vezes, aí eu fui correndo
pra bilheteria porque, embora tenha quase me matado, o taxista me deu uma leve
esperança de que eu ainda poderia pegar a peça, mas a atendente disse que já
eram dezesseis e vinte e não dava pra entrar atrasado, eu nem insisti pois
estava errado mesmo, aí fiquei sentado ali nas escadas do centro cultural banco
do brasil comendo um salgado e tomando uma coca e vendo as pessoas passarem, aí
resolvi dar uma volta pra passar o tempo, entrei num lugar aonde um cara estava
colocando uns sons estranhos para umas pessoas estranhas dormirem em pufes
espalhados pelo chão, eu estava meio cansado e então resolvi sentar em um dos
pufes, mas logo me enchi o saco daqueles sons e fui dar mais uma volta e aí eu
vi a atriz bonita que fazia a peça, ela estava com uma rosa na mão e era mais
bonita em fotos do que pessoalmente, mas também era bonita pessoalmente, aí
fiquei uns cinco minutos olhando pra ela de longe, sabe deus por que, até que
cansei, peguei meu celular e fiz uma rota no GPS para chegar no hotel, comecei
a seguir a rota e achei o largo das artes por um grande acaso como contei
anteriormente e você foi a primeira coisa que eu vi lá dentro como contei
anteriormente e vi você mais umas vinte vezes que era pro caso de nunca mais
ver, ter visto todas as vezes que fossem possíveis e você estava com outros
dois caras que eu torci para que nenhum fosse seu namorado, aí deixei você um
pouco de lado e fui curtir a exposição e comprei várias coisas lindas como um
cartaz que diz que pessoas descansam sob as árvores e aí por um grande acaso do
universo nós dois paramos juntos para ver a mesma obra e a artista deu a
explicação para nós dois e eu fiquei feliz e aí fui para o outro lado ver mais
coisas e aí vi você indo embora e assinando seu nome na lista de presenças do
evento e não resisti, tive que olhar e anotar seu nome para procurar na
internet mais tarde e eu anotei seu sobrenome errado, ao invés de scarla eu
anotei scorla, mas o facebook anda muito inteligente ultimamente e você foi o
primeiro resultado e tudo isso faz uma semana, apenas ontem eu tive coragem de
te adicionar, perguntei pra vários amigos e a enquete ficou apertada, mas
resolvi adicionar mesmo assim e você aceitou, mas não respondeu ao texto que eu
coloquei explicando, aí coloquei uma carinha feliz para mostrar que estava
feliz por você ter me aceito, mas você também não respondeu a isso, o que está
tudo bem, eu não esperava nem ao menos ser aceito, estou no lucro, já posso
pegar outro táxi da morte e morrer.
Monday, November 18, 2013
de repente o mar de repente uma grande criatura de repente tanto mar de repente tanto tempo de repente tanta coisa de repente pouco tempo de repente pouca coisa de repente pouco mar de repente navegar de repente de olhos fechados de repente ou de corpo aberto de repente voar de repente o cinza de repente a cor de repente os dois de repente um só de repente mais de repente o nada de repente correr de repente se virar de repente esperar de repente esperar de repente esperar de repente esperar de repente esperar de repente esperar de repente esperar de repente esperar de repente esperar de repente esperar de repente esperar
os passos de gato dados
os passos de gato dados um de cada vez
pintados de leve de um vermelho
gritante
os passos de gato
os passos de gato em cima da árvore
os passos de gato em cima da árvore alta
os passos de gato dados um de cada vez
os passos de gato
os passos de gato ouvidos
os passos de gato ouvidos ao longe
por quem espera dar passos de gatoWednesday, November 13, 2013
Ingrid
eu sentei ao seu lado no ônibus
mesmo havendo espaços maiores vagos, ingrid, eu conversaria com você mesmo
se você não estivesse com um livro do galeano debaixo dos braços, ingrid, eu
chamei outros dois 433 antes e eles não pararam para mim, ingrid, eu devia
estar estudando mas estava ao seu lado, ingrid, eu devia estar estudando mas
estou procurando no facebook todas as mulheres chamadas ingrid que moram no rio
de janeiro, ingrid, você vestia laranja e tinha dentes brancos, ingrid, eu não
peguei seu sobrenome, ingrid, você pegou o meu quando eu lhe dei meu livro,
ingrid, por favor me procure, ingrid, você pega o mesmo ônibus todos os dias,
ingrid? na verdade tanto faz, ingrid, estou indo embora amanhã, ingrid, eu
esqueci de lhe dizer isso, ingrid, talvez eu não volte nunca mais, ingrid, eu
preciso estudar, mas a internet do hotel não está funcionando direito, ingrid,
onde você estava antes? tomara que você não seja essa que parece um pouco no avatar e está casada, ingrid, ou ainda essa que posta apenas coisas relacionadas a academia e perder peso, ingrid, muito menos essa ingrid que trabalha na empresa vasp - vagabundos anônimos sustentados pelos pais, ingrid, eu ia tirar foto com o ney matogrosso mas não consegui
e fui embora, ingrid, e você estava no mesmo ônibus, ingrid, você tem muita
cara de carioca, ingrid, isso é um elogio, ingrid, quero lhe ver de novo, ingrid, eu não entendi direito o nome do selo
literário em que a sua amiga trabalha mas fiquei com vergonha de pedir pra você
repetir, ingrid, por fim, ingrid, foi uma das cenas mais tristes da minha vida,
ingrid, ver você desaparecer da janela do ônibus para um provável nunca mais.
Tuesday, October 29, 2013
Tic Tac
acho que funciona mais ou menos como bala. não, não bala de
revólver, talvez mais próximo da droga, mas também não. é a bala tipo o doce. mas
aí também pode ser confundida com a droga. acho que a essa altura todo mundo já
entendeu. enfim, também acho que é importante deixar claro que não é a bala
chiclete, aquela que não pode nunca engolir porque senão mata de uma forma
muitíssimo horrível, que é trancar tudo dentro do corpo. é a bala tipo halls mesmo. tic tac. freegells
de cereja, aquela que há muito tempo era vendida com uma charada do show do
milhão dentro. uma das minhas principais lembranças da infância. o que eu quero
dizer, e digo agora antes que esqueça, coisa muito provável de acontecer, é que
a vida funciona mais ou menos como bala. não, o tamanho da bala não importa. você
por favor me deixe falar caso contrário eu vou esquecer e já comi quase o
pacote inteiro e tenho medo de perder a inspiração assim que o pacote terminar
de vez. a vida funciona mais ou menos como bala porque a gente pode até tentar
economizar pra durar mais tempo, a bala ir diminuindo, diminuindo, até não
sobrar mais nada, mas é muito difícil fazer isso. muito difícil. o mais comum é
você não resistir e morder a bala no meio do caminho. e aí a bala perde
totalmente a graça. é engolir e comer outra. mas o pacote vai terminando, daqui
a pouco se foi todo e você desperdiçou tudo sem a menor graça. pelo simples
prazer de menos de um segundo que é morder a bala. não tô dizendo que todo
mundo é impulsivo e morde a bala por ser fraco e não conseguir se segurar e ter
que morder a bala caso contrário sabe-se-lá o que pode acontecer, que tipo de
monstro pode vir cobrar a mordida. não é isso, embora comigo seja e tenho quase
certeza de que com quase todo mundo também, uns tendo mais força de vontade que
os outros e mordam depois. não, eu já disse que o tamanho da bala não importa.
tudo bem que o tic tac dura menos então a tentação é teoricamente menor que a
de um halls, mas você já mordeu os dois, não é? sabe que o gosto maior do tic
tac tá dentro dele, coisa que a pessoa só tem acesso caso morda, quer dizer, eu
acho, nunca consegui chegar até o final do tic tac, quando vê lá no final tem
um gosto esplendido de redenção, não sei. não tô dizendo que todo mundo é
impulsivo e morde a bala por ser fraco e não conseguir se segurar e ter que
morder a bala caso contrário sabe-se-lá o que pode acontecer. mas, vamos ser
honestos, às vezes a gente nem repara, tá lá tranquilo, tá tudo bem, a bala tá
sob controle , mas quando vê ela tá lá,
partida ao meio, com a vida dividida em dois. e esse é o maior problema em a
vida funcionar mais ou menos como bala. quando algo incomoda, como é o caso do
que acontece comigo, que não consigo ficar sem morder a bala, há toda a dor da
agonia que é morder ou não. e aí quando você morde a bala vem toda aquela
sensação de prazer oriunda do alívio que é se livrar da agonia. mas quando não
há dor é tudo muito triste em a vida funcionar como bala. pois a pessoa não
percebe a mordida e não aproveita o gosto do tic tac mordido. e aí a pessoa
fica tentando voltar o filme, desde o momento em que colocou a bala na boca,
procurando em vão o momento em que a coisa foi pro espaço. pode vasculhar o
cérebro à vontade que não vai achar. também pode acontecer de você estar indo
bem, mantém a bala sob controle, tá concentrado em manter a bala inteira, já
está chegando no final, vai conseguir, vai conseguir e de repente a bala se
quebra, pois já está muito frágil, não foi culpa sua, nem mesmo da bala, não há
um culpado, simplesmente aconteceu, parte pra outra e... ah, não! a minha gata
empurrou o pacote de bala no chão e esparramou tudo!
Friday, July 05, 2013
Momento
- O que você vai querer comer?
- Você está perguntando, no nosso
jantar de aniversário de vinte e sete anos de casados, o que eu vou querer
comer?
- Sim, eu estou perguntando, no
nosso jantar de aniversário de vinte e sete anos de casados, o que você vai
querer comer porque em vinte e sete anos de casados, somados a mais três de
namoro e mais um e meio em que eu te observava por aí você sempre iniciou um
jantar perguntando “o que eu vou querer?”.
- Então nesse tempo todo você já
deveria ter percebido que eu pergunto
para mim o que eu vou querer comer.
- Você e esse seu feminismo.
- Você e essa sua ideia errada de
feminismo.
- A gente vai passar o nosso
jantar de aniversário de vinte e sete anos de casados brigando? Tudo bem que
isso aconteceu no jantar de vinte e três e depois o amor de um pelo outro
cresceu como não crescia há quinze, mas agora, quatro anos depois, nossos
filhos já estão formados na faculdade. Não temos mais esse gás todo para brigar
e fazer as pazes em questão de horas.
- Concordo.
- Por falar em filhos, você tem
falado com a Mariana? Assim, depois da demissão.
- Não. Eu liguei várias vezes,
mas nada. Falei com a menina que divide o apartamento e ela disse que a Mariana
não forma uma frase de cinco palavras há duas semanas.
- Bom, normal. Quando a Mariana
fala pouco, ou não fala, é porque já passou de fase no sofrimento. O problema
sempre foi quando ela ficava falando sobre o assunto por três horas
consecutivas.
- Você sempre entendeu a Mariana
muito melhor do que eu. A minha relação com ela sempre foi tão... Distante, não
sei.
- Não é uma relação distante. Com
certeza é uma relação diferente da que eu tenho com ela, mas isso vai de pessoa
pra pessoa. Você pode ver isso como ela precisando falar mais para se comunicar
comigo e com você ser tudo mais simples.
- Mais superficial...
- Talvez. Mas essa ideia de
“superficial” e “profundo” é tão subjetiva. O fato de você estar preocupada com
a forma com que ela está levando essa fase difícil já não significa que a
relação de vocês duas é profunda? Vai ver é só uma questão de jeito. O seu é de
analisar as coisas com distanciamento, para formar uma opinião mais sensata
sobre as coisas, enquanto o meu é mais próximo.
- Então eu sou mais distante
mesmo.
- Você não é mais distante. É
como se eu fosse pai e você anjo da guarda.
- Mas eu não quero ser anjo da
guarda, eu quero ser mãe. Às vezes eu acho que a nossa filha me vê mais como
uma amiga distante do que como uma mãe!
- Eu acho que você está viajando
na maionese. É claro que ela vê você como mãe dela. Você só é um tipo
diferente, mas diferente do que você mesma espera ser, e não do que ela espera
que você seja. Então, o que você vai querer comer?
- Eu não sou “um tipo diferente”
de mãe. O que é “um tipo comum” de mãe? Ficar o dia todo em casa fazendo comida
e passando roupa? Se for, eu realmente prefiro ser um tipo diferente.
- E tenho certeza de que a
Mariana tem o maior orgulho de você ser do jeito que você é. Eu acho que vou
pedir esse salmão.
- Olha aqui...
- Meu bem, hoje é o nosso
aniversário de vinte e sete anos de casados. A nossa filha já está bem crescida
e superando muito bem um problema. Vamos tentar ser namoradinhos só por hoje?
- A gente nunca foi muito
“namoradinhos”, né? Acho que por a gente ser muito amigo, não sei. Mas a gente
nunca foi um casal desses que têm apelidos e coisa e tal.
- Não, mas quando estamos só os
dois a gente é bem namoradinho.
- :) Será que nós estaríamos aqui
os dois, trinta e sete anos de casados, somados a mais três de namoro e mais um
e meio em que você me observava por aí, se fôssemos “namoradinhos”?
- Eu acho que não, porque a gente
estaria sendo pessoas que não somos. A gente está aqui, trinta e sete anos de
casados, somados a mais três de namoro e mais um e meio em que eu te observava
por aí porque se encontrou. E não por aquela história de “alma gêmea”, que eu
acho uma besteira e você também. A gente se encontrou, viu que ali na frente
estava uma pessoa que dava pra passar a vida toda e foi lutando pra fazer dar
certo.
- Você sempre lutou mais do que
eu...
- Mais uma vez é viagem sua nessa
maionese doida que é a sua cabeça. Você só foi sempre mais calada, mais
introspectiva. A sua luta sempre foi com você mesma.
- Eu sempre tive medo que a gente
se separasse em algum momento. Não separar no sentido de divórcio, porque isso
é coisa que acontece. Separar no sentido de se desligar.
- Eu também, embora sempre
dissesse ter uma segurança imensa do que a gente tinha. Mas agora estamos aqui
os dois nesse diálogo escrito por você.
- Mas que poderia muito bem estar
sendo escrito por você. Eu acho que vou escrever que você me beija agora.
- Escreve antes aí que o meu
salmão chegou, porque a fome está quase maior do que a nossa história.
Monday, May 27, 2013
Casa
Nesse mundo cheio de caraminholas, dor de cabeça e corrupção
na saúde existem as casas. E são muitos os seus tipos.
Tem a primeira casa de morar junto, que é um sonho e quando
se realiza depois de muito esforço não dá vontade de sair nunca mais. Mas
manter uma primeira casa de morar junto – que também pode ser a do meio,
podendo inclusive ser a do fim, podendo inclusive ser a primeira de todas – é uma
tarefa das mais árduas. Normalmente esse tipo de casa é habitado por jovens,
novinhos na vida, que ainda não sabem muito bem o que fazer depois que já estão
ali morando juntos, será que vai dar certo, será que não vai, se não der quem
vai ficar com a casa, e esse mundaréu de dúvidas se soma às dívidas que chegam
tanto quanto e o pobre casalzinho, novo na vida, que ainda não sabe muito bem o
que fazer depois que já está ali morando junto, ainda não tem a base necessária
para uma casa de tanta importância e o imóvel, que não tem nada a ver com isso,
acaba simbolizando esse tsunami todo. A primeira casa de morar junto – que também
pode ser a do meio, podendo inclusive ser a do fim, podendo inclusive ser a
primeira de todas – requer muita coragem e muito empenho. E um pouquinho de
amor também.
Tem a casa de morar sozinho. Essa tem que ser muito amiga da
pessoa que for lhe acompanhar, porque pessoas tendem a gostar de solidão só por
um tempo e, quando esse tempo passa, a casa tem que ser quente para não
desandar tudo. O fato de ser uma casa de
se morar sozinho também aperta quando a pessoa precisa de alguma coisa que só
outra pode fazer, como por exemplo, anotar um recado quando o sozinho não está
ou massagem.
Tem casa que é abandonada no meio do caminho porque os seus
habitantes precisam de mais espaço ou esperam algo maior que a casa não pode
por si só dar e fica ali tentando se explicar, tentando achar uma solução, “quem
sabe vocês não me deixam por um tempo para eu me reformar, quem sabe pode dar
certo?”, mas os custos não valem a pena, ela já tá ficando velhinha mesmo,
melhor se mudar para uma maior.
Tem casa que é movente. Essa casa é tão boa, mas tão boa,
que vale a pena levar junto quando se quer – ou se tem que – ir para outro
lugar. Apenas as casas que não podem ser destruídas com um sopro do Lobo Mau podem
ser moventes.
Tem casa que não é bem casa. São aquelas construídas em
série com a finalidade de receber moradores por um espaço curto de tempo
determinado. As casas que não são bem casas costumam ser interessantíssimas, há
sempre a surpresa de como serão por dentro, mas os lençóis que não são seus, o
colchão que é melhor do que o seu, mas não tem o seu formato, as janelas que
não abrem, tudo isso contribui para que a estadia dure tanto quanto o sabonete
oferecido por elas.
Tem casa que não existe. Tem casa que é carro. Tem casa que
é aeroporto. Tem casa que é o escritório porque as coisas não vão bem
financeiramente. Tem casa que é dos outros. Tem casa que é várias ao mesmo
tempo.
A casa que a tartaruga tem é um caso muito especial. Ter a
mesma casa por duzentos anos não é para qualquer ser vivo.
Tem casa que pega fogo. Ou por muito amor ou por um
descuido. O incêndio também pode ser causado pelo casamento destes dois
fatores. Pessoas quando amam são naturalmente atrapalhadas, mesmo aquelas mais
organizadas, centradas e sensatas são atabalhoadas em algum momento ou caso. Aí, sabe como é, uma faísca perto de uma
madeira e a casa vira escombros.
Tem casa que precisa ser desabitada por um tempo. Precisa
passar por algumas reformas, o piso do banheiro é muito frio, a sala tá muito
pequena e a cozinha muito grande, talvez seja melhor equilibrar isso. Em alguns
casos, a casa que precisa ser desabitada por um tempo precisa disso para que
não acabe matando seus moradores. Acontece quando há uma infiltração e o teto
pode cair, quando há uma infestação de ratos ou quando há risco de desabamento,
mas aí o caso é seríssimo e a saída tem de ser imediata.
Tem, claro, a primeira casa. Essa é aquela onde você deu os
primeiros passos, onde ganhou os melhores presentes de natal e onde não havia
muitos problemas. Na primeira casa estão o vão da porta do quarto, utilizado
para marcar a sua altura no decorrer dos anos, a sua caixa de brinquedos, hoje
empoeirados, mas que ainda dão vontade de serem brincados, os cadernos antigos
da escola, os caminhos que você já conhece milimetricamente por fazê-los há
anos. E a primeira casa também conhece você milimetricamente. A primeira casa é
capaz de perceber quando o morador está um pouco borocoxô e fazer nascer uma
flor de jasmim no quintal. Acontece também de a primeira casa ser também a do
meio ou última ou a do meio e a última, não podendo jamais esse processo ser
considerado certeiro.
Tem casa que tem intimidade o suficiente com seus moradores
ao ponto de receber um apelido – geralmente Lar. Esse tipo também pode ser a
primeira, como pode ser a do meio, ou a do fim, podendo ser a mesma e podendo
ser várias ao mesmo tempo.
Um grande problema acontece quando a primeira casa é vendida
após uma pessoa ir para a casa de morar sozinho. Às vezes acontece inclusive de
ser de repente, a pessoa já não tem muito contato com ela, até por querer
desfazer o vínculo de vez, então não há porque ter o aviso. Mas, ao saber que a
casa não lhe pertence mais, como sofre a pessoa da casa de morar sozinho! Dá
aquela dorzinha no coração e na garganta, o que funciona como um combustível pra
fazer besteira e lá vai a pessoa da casa de morar sozinho tentar invadir a
primeira casa. Cresceu lá, muito já subiu naquelas árvores e sabe quais dão
acesso. Mas não tem muito o que fazer. Aquela residência, outrora sua, agora é
o Lar de outra. Aquele quarto, outrora seu, é o descanso de outra. Aquele pátio,
outrora lugar de esconder as coisas mais especiais para serem trazidas de volta
no futuro, agora está inatingível.
Monday, May 20, 2013
Subjetivo
quando você some fica offline não atende celular não atende porta não responde sms meu deus como minha garganta dói dá vontade de te ligar mas você não atende celular não atende porta não responde sms some fica offline e a voz dentro da cabeça fica tentando fazer o caminho mais fácil mas já são anos obviamente o caminho mais fácil não seria o caminho mais fácil ou será que seria que pena se for pois ser o caminho mais fácil significaria que na verdade a história é igual e não há tantas coisas especiais como pareciam há dois minutos aquelas em que eu canto rei leão você ri você conta o dia eu presto atenção você encosta o pé no meu e eu deixo eu encosto o pé no seu você me faz carinho você tem dor de cabeça eu curo eu saio da terra você me cura você pisa os pés no chão eu curo mas aí aparece outra voz dizendo pro coração calma o coração dizendo pra cabeça calma nada a garganta dizendo não aguento mais o pulmão dizendo ai ai ai a perna dizendo meu deus do céu você dizendo não e eu não podendo dizer nada porque você some não atende porta não responde sms não atende celular fica offline e beijo você antes de tirar os sapatos
Wednesday, April 24, 2013
Imaginário
- Oi.
- AH! QUE SUSTO! Quem é você?!
- Você não se lembra de mim? É como se Deus não lembrasse
de Adão e Eva.
- Hãn?
- Eu sou o Augusto.
- Augusto...?
- Nem assim? Vamos lá, pensa um pouco.
- Hmmmnão, desculpa. Não me lembro.
- E se eu desaparecer e aparecer de novo assim?
- Como você fez isso??????
- É simples. Eu não existo.
- Não existe?
- Desde dezenove de janeiro de mil novecentos e noventa e
sete, data em que você decidiu que estava grande demais para um amigo
imaginário.
- Você é o meu amigo imaginário???
- Era, né? Eu não
sei se você se lembra, mas você me abandonou.
- E você queria o que? Que eu tivesse um amigo imaginário
pela vida inteira?
- Eu teria um amigo real pela vida inteira. Enfim, você deve
estar se perguntando por que diabos eu voltei, assim, tanto tempo depois.
- Na verdade, não. Eu ainda estou trabalhando com a hipótese
de estar sonhando.
- Me avisaram que isso provavelmente aconteceria...
- Ai!
- Desculpe, mas o beliscão foi necessário. Agora você
acredita em mim?
- Não, mas se eu disser isso você vai me beliscar de novo e
eu ando numa de evitar dor.
- É por isso que eu voltei. Para falar que você é um idiota.
- Só isso? Não precisava ter saído lá do... da... de onde
você vem. Eu sei que sou um idiota.
- Não tem nada mais idiota do que dizer “eu sei que sou um
idiota”.
- Sei disso também. Por isso que eu sou um idiota em dobro.
- Você é muito chato. Eu não sei como sigo querendo ser seu
amigo.
- Por que você não existe. Você é uma criação minha. É uma
criatura que gosta de mim inclusive quando eu sou idiota.
- Você é tão idiota e tão inseguro que me criou apenas para
ter a segurança de que alguém gostaria de você na saúde e na doença... Eu vou
ter trabalho.
- O seu trabalho já está feito aqui, certo? Por que então
não volta pra... SEI LÁ ONDE!
- Eu venho do mundo dos amigos imaginários abandonados.
- Essa coisa existe?
- Mas claro. Está em pauta a criação de um sindicato da
categoria. Precisamos nos unir contra pessoas como você. Mas enfim, eu não
volto para lá porque você é idiota por muitos motivos, mas um deles em
especial. Um que se eu não viesse te salvar hoje, provavelmente você se
tornaria um idiota eterno.
- E que motivo é esse?
- O fato de você sempre colocar a carroça na frente dos
bois.
- Hãn?
- Ah, desculpa, essa é uma expressão muito usual no mundo
dos amigos imaginários abandonados. Significa sofrer por antecedência. Ter uma
ejaculação precoce de preocupação.
- Eu não tenho isso! Sou perfeitamente capaz de controlar
meu sofrimento!
- Cara, por favor, isso é normal, acontece com todo mundo.
- Comigo nunca!
- Ah, é? E quando eu apareci aqui hoje? Você não se
preocupou comigo ao ponto de esquecer totalmente de quem eu era?
- Ah, sim, porque é extremamente normal uma pessoa aparecer
de repente, depois desaparecer e aparecer de novo. Na verdade, é até
corriqueiro, acontece toda semana. Estava estranhando a demora nessa.
- Idiota. E o que dizer de quando você me abandonou?
- O que tem?
- Você decidiu que “estava muito velho para ter um amigo
imaginário”, me jogou no fundo do armário e o que aconteceu? Você passou cinco
anos sem ter um amigo sequer. Os cinco anos mais tristes da sua vida. Tudo
porque, impulsivamente, decidiu que “estava muito velho para ter um amigo
imaginário”.
- E você voltou, mais de dez anos depois, para reclamar
disso?
- Idiota. Eu vim salvar você de fazer tudo de novo. Vim
salvar você de você mesmo, se você for uma pessoa de clichês.
- Eu já disse que tenho total controle do meu sofrimento.
- Todos dizem isso, mas, na hora H, o fluxo é muito grande e
não conseguem segurar. É puro receio de iniciar o tratamento.
- Vamos acabar logo com isso. Me trate logo.
- Isso. Aceitação do problema é o primeiro passo. Sente-se
nessa cadeira enquanto eu monto o equipamento.
- Que cadeira?
- Ah, desculpe. Essa.
- Vai logo com isso.
- Tudo pronto. Veja esse powerpoint produzido por mim mesmo
para a ocasião.
- “Como curar o sofrimento precoce”?
- Sim. Algum problema? Acho bom. Então, você reconhece essa?
- Sim, é minha namorada.
- Não. Essa é a pessoa que você vai abandonar semana que vem
porque pensar que daqui vinte anos vocês pensarão de formas diferentes. Não quero
me gabar, mas ela é minha namorada.
- Ela é MINHA namorada!
- Não. Vocês dois vão ser muito diferentes no futuro e isso
fará com que você, num futuro um pouco mais próximo, se encha de sofrimento ao
ponto de não se segurar e estragar tudo. Eu também não penso da mesma forma que
ela, mas tenho meu sofrimento perfeitamente controlado. Consegui manter-me
firme, sem querer viver a vida inteira em cinco meses. Se você quiser ela de
volta, tem totais condições. Ela te ama e eu sou só um passatempo. Mas acho melhor
correr, pois eu sou um ótimo passatempo. Recheado quando ela deseja, simples
quando ela precisa.
- Como você pode fazer isso? Eu pensei que nós fossemos
amigos. Tudo isso é vingança por algo que eu fiz há mais de dez anos? Olha,
você é menor do que o instante em que desapareceu antes de aparecer de novo.
- Eu posso fazer tudo. Eu não existo.
- Como não existe se daqui dez anos irá roubar a minha
namorada?
- Eu existo apenas quando você quer que eu exista. Sou uma
criação da sua cabeça para frear os seus impulsos. Funciono como um gel
retardante. Agora, faça o favor de me deixar em paz no mundo dos amigos
imaginários abandonados e se acalmar. Sei lá, fazer uns exercícios, meditar... Pode começar
treinando agora. Lá vem ela.
- Você é o melhor amigo que eu já tive na vida. E sou eu
mesmo. Eu vou. Mas calmamente. Rápido.
Sunday, April 14, 2013
Monday, April 08, 2013
Não adianta insistir
Roberto decidiu: Não viajaria nunca mais. Chega do estresse
de achar que o avião vai cair, que o ônibus vai tombar, que está muito estranho
o jeito com que esse motorista faz as curvas, ou de não saber se é mais seguro
botar o cinto ou não. Certa vez um amigo contara de um amigo que havia morrido
por estar usando o cinto. “O ônibus tombou e ele ficou preso”. Tudo bem que na
maioria das vezes Roberto não morria e voltava pra casa em segurança, mas toda
aquela apreensão, somada à dor no pescoço decorrente do trajeto Pelotas-Porto
Alegre não valiam a pena para desbravar novos horizontes e viver experiências magníficas.
Roberto não viajaria nunca mais e “não adianta insistir”.
Em sua última viagem, diga-se de passagem uma das em que se
encontrava mais animado, Roberto terminou com vômito de bebê no colo e um
ligamento de joelho rompido. Ao perceber que a criança estava prestes a fazer
aquilo que dali 20 anos fará em demasia por outros motivos, Roberto pulou de
seu acento, mas como são pequenos os espaços nos aviões, meu Deus do céu,
Roberto bateu com o joelho no acento da frente com força jamais vista. Após saberem do ocorrido, os amigos, já
acostumados com suas desistências de cinco minutos, tentaram argumentar,
dizendo-lhe que ele estava exagerando, que era coisa de momento, de calor da
hora. “Você está vendo a viagem apenas pelo lado negativo. Não está levando em
conta o fato de que viajando se descobre coisas novas, conhece pessoas novas,
descobre você mesmo, conhece você mesmo”. De nada adiantou. Não viajaria nunca
mais.
Tudo bem, Roberto, você tem todo o direito de não querer
mais viajar para evitar o estresse de correr pelo aeroporto inteiro para
descobrir que seu vôo mudou de portão, ou correr para comprar a última passagem
do ônibus da meia noite para pelotas porque o próximo só sai às sete da manhã.
Tudo bem querer evitar se perder em uma cidade desconhecida e andar de um lado
para o outro sem saber o que fazer. Tudo bem até não querer fazer uma parada no
Grill antes de seguir viagem porque é muito perigoso. Mas, Roberto, assim você
perde o prazer que é voltar pra casa.
Sunday, March 31, 2013
Fundo branco
- Sai.
- O quê?
- Eu não quero você no meu sonho.
- É claro que você quer. Se não quisesse eu não tava aqui,
só eu e esse fundo branco.
- Não quero. Por que você não aparece quando a gente tá bem?
Você só aparece no meu sonho quando eu já passei uma noite inteira pensando em
como não pensar em você. Quando eu quero sonhar com você acabo sonhando com
carros, trabalho, comida, campos de girassóis...
- O problema é que você pensa demais em mim. É por isso que
eu estou aqui.
- Então você quer que eu pare de pensar em você?
- Não “parar de pensar em mim”. Parar de só pensar em mim. Você podia às vezes,
só pra variar um pouco, pensar em carros, trabalho, comida, campos de
girassóis...
- Eu pensei que fosse bom ter uma pessoa que pensa em você
toda hora.
- É bom. Mas você não me dá muita folga, entende? Quando eu
tô de pernas pra cima, tomando um suco na frente do mar, aparece um chamado
avisando que você vai pensar em mim de novo e lá vou eu tomar banho rápido pra
ficar bonita e entrar no seu pensamento.
- Eu não sabia que pensar em você te dava tanto trabalho. Me
desculpa.
- Ah, não. Lá vem você ficar encucado com algo que eu falei.
Vou ligar pra casa e avisar que hoje a noite vai ser longa e que só vou voltar
de manhã.
- Não tô encucado com nada. Tô realmente surpreso com isso
tudo. Mas, olha, não é totalmente culpa minha. E quando você aparece de repente
na minha mente?
- Aí a culpa é minha. Sou eu cumprindo horário na sua
cabeça. Não é algo que eu queira também. Mas sabe como é, tenho que comprar
comida pros filhos...
- Você e essa mania de transformar tudo em obrigação. Até
parece que não gosta de me ver pensando em você.
- Mas eu gosto. Como eu disse, o problema é a hora extra.
Quando você pensa só em mim ao ponto de discutir comigo dentro do seu próprio
sonho só para ouvir a minha voz.
- É, eu tenho esse dom de dominar os diálogos dentro dos
meus sonhos. Pouca gente consegue.
- Sim. E quem sofre com isso sou eu.
-...
- Ai, tô brincando. Você tem que achar mais graça das minhas
piadas.
- Eu acho graça. Na verdade sempre tento achar graça, mas é
difícil quando a piada é com você mesmo.
- Talvez você tenha que aprender a rir mais de você mesmo.
- E talvez você tenha que parar de me dizer o que fazer.
- Você com certeza
tem que aprender a rir mais de você mesmo.
- Que horas são?
- Quatro e meia.
- A gente tem que ficar conversando aqui até que horas?
- Tá marcado pra você FINALMENTE parar de pensar em mim lá
pelas oito.
- E o que a gente faz até lá?
- O de sempre. Você fica tentando conversar comigo tudo o
que não consegue falar no mundo real e eu faço as caras que você adora na
frente desse fundo branco.
- De novo, mil desculpas por isso.
- De novo, para de ficar me pedindo desculpas por tudo.
- Me diz uma coisa que eu provavelmente vá me arrepender de
perguntar. O meu “eu dos sonhos” também tá bolado por ser chamado toda hora por
“você do mundo real”?
- Jura. Você vai correndo.
Thursday, March 07, 2013
"Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia".
Pessoa
Pessoa
Wednesday, February 20, 2013
A gente ter se mudado pra cá
- Você passou a segunda demão na parede da sala?
- Tu tá falando “você”? Não faz duas semanas que a gente tá
no Rio.
- Ai, não enche. Vê se não vai estragar essa parede, pelo
amor de Deus, sabe-se lá quando a gente vai ter dinheiro pra pintar de novo.
- Relaxa. Esse é o primeiro momento em duas semanas que a
gente sentou pra fazer nada. Aproveita que tá tudo nos conformes. Relaxa.
- Relaxar... Não sei como tu consegue. O mundo inteiro
desmoronando e tu nesse clima novela das seis.
- Depois de passar duas semanas de sufoco após vir pra
cidade grande sem certeza alguma, conseguir um emprego que vai dar pro gasto
nos próximos meses sem atrapalhar nossos estudos, organizar uma casa nova e
pintar uma sala inteira, eu me permito viver num clima novela das seis.
- Como se fosse só nesses casos...
- A partir do momento em que essa conversa deixar de ser
sobre a parede da sala eu vou começar a dormir.
- Então tu achas que tá tudo perfeito pra gente? Acha que a
vida vai ser moleza a partir de agora?
- É claro que não. Eu só tô aproveitando uma horinha de paz
antes de me desesperar de novo.
- Não é melhor levantar e fazer tudo logo?
- Não.
- Então tá. Vou ficar sentada aqui também. Totalmente
relaxada, esse mundo é uma beleza mesmo, acho que vou pegar uma revista, um
pacote de biscoito e tomar um suco.
- Tu tá relaxando do jeito errado. E eu comi o último pacote
de bolacha.
- EU NÃO ACREDITO QUE VOCÊ COMEU O ÚLTIMO PACOTE DE BOLACHA.
- Relaxa, eu compro mais amanhã. Deixa eu te ensinar a fazer
isso da maneira certa. Sentar na sacada
com vista para uma construção: Sim. Encucar porque eu comi o último pacote de
bolacha: Não.
- COM QUE DINHEIRO TU VAIS COMPRAR “MAIS”?
- Relaxa. Vamos fazer assim. A gente se esparrama na cama,
liga o ventilador, dorme por uma horinhazinha só e depois senta pra fazer as
contas pra conseguir comprar mais bolacha amanhã. Pode ser?
- Que cama?! Tu não percebeu que a gente tá dormindo no
colchão de solteiro que o teu amigo emprestou? A gente só vai poder comprar uma
cama de verdade semana que vem.
- “Cama” pra mim não é o objeto cama. É um lugar pra
descansar. Se fossem folhas de jornal eles seriam “cama” pra mim.
- Até parece que eu vou conseguir dormir, mas tá.
- Vai, sim. Ninguém resiste ao meu cafuné. É a música da
Jigglypuff dos cafunés.
- Tu acha que vai dar certo?
- Eu juro que passei a segunda demão na parede. Dorme, por
favor.
- Às vezes só o esforço de fazer tudo certo na hora de
pintar a parede não adianta.
- Ok. Tu tá falando “da gente”, do fato de a gente ter se mudado
pra cá ou simplesmente da parede?
- Eu tava falando simplesmente da parede. Pensei que tu não
querias falar sobre “a gente” ou “a gente ter se mudado pra cá”. Mas já que o
assunto foi tocado...
- Sim, talvez e sim.
- O talvez é “a gente”?
- Não, o talvez é “a gente ter se mudado pra cá”.
- Tu tens mais confiança na pintura da parede do que no fato
de a gente ter se mudado pra cá?
- Não é questão de ter mais confiança. É mais uma coisa de
navegar é preciso, viver não é preciso. Eu li uns tutoriais na internet e saquei
como se pinta uma parede. Não existe um tutorial online que ensine a vencer na
cidade grande. Quer dizer, existe. Na verdade uns quantos, talvez bem mais do
que ensinando a pintar parede. Mas o que eu quero dizer é que existem vários
caminhos para o que a gente quer em termos de “a gente ter se mudado pra cá”.
Pode ser que a gente tenha vindo pelo certo. Pode ser que a gente precise de
uns atalhos. Pode ser que a gente erre o caminho e tenha que recalcular a rota.
Pode ser que a gente tenha que recalcular a rota de novo. E de novo. Mas de
demão em demão a gente vai levando.
- ZZZZzzzzzZzzZZZZZZZZZZZZZzzzzzZZZZ
- Ok, dormiu. Agora é a hora de passar essa segunda demão.
Monday, February 18, 2013
Um inseto pousou em meu ombro
Não sei direito qual, é um daqueles que entram pela janela do quarto
nas madrugadas de verão e quando a gente acorda eles não estão mais lá. Mas bem maior. Tem grandes olhos pretos e o
corpo meio alaranjado na parte de baixo e uma coisa meio cinza em cima.
Passei a
mão no ombro para tirá-lo.
O bicho se
assustou e saiu voando.
Direto para
o ventilador, que friamente o corta ao meio. Uma parte cai no chão e a outra
fica presa nas grades.
Morte na
hora, penso eu. E fico alguns segundos parado olhando a cena ao mesmo tempo em
que tento processá-la. Tudo isso aconteceu em questão de três segundos. Um,
vejo o bicho no meu ombro. Dois, tiro. Três, ele é partido ao meio. Como a
morte é rápida, meu Deus do céu. Como a vida é curta, meu Deus do céu. De um
segundo para outro todo mundo puft, seja humano ou inseto que só especialistas
em inseto sabem o nome.
Passados
alguns segundos a parte do bicho que caiu no chão começa a se mexer.
Felicidade, penso eu. Só abrir a janela, soltá-lo no mundo e ir dormir com o
ventilador me refrescando. Mas o bicho não consegue voar. Tenta com todas as
suas forças, se debate incessantemente, mas as leis da aerodinâmica o
condenaram a não sair mais do chão. E o
ventilador girando.
O inseto
ali, me olhando com aqueles olhos pretos e gigantes que se dividem em ter medo
e verem em mim uma oportunidade de salvação. Tenho que salvá-lo, penso. Surge a
ideia de amarrar o restante que ficou preso nas grades ao pedaço que bate asas,
pois parece realmente ser um caso de falta de peso, mas obviamente não sei como
proceder, então desisto. E se esgotam as ideias para salvar o bicho que fora
cortado ao meio porque deixei a janela aberta por causa do calor. E o bicho
aqui, do meu lado, tirando forças das forças das forças para tentar voar, mas
começando a cair a ficha de que não conseguirá.
Que morrerá
nesse lugar estranho.
Que nunca
mais verá os filhos, órfãos e sem ter o que comer a partir de agora.
O mais
velho terá de sair da faculdade para trabalhar, até que um dia será cortado ao
meio por um objeto cortador não identificado.
Tento
descobrir na internet de que inseto se trata para descobrir o quão ligados à
família eles são.
Tenta mais
uma vez sem sucesso alçar voo.
Começo a
pensar em dar-lhe o golpe de misericórdia. Acabar com seu sofrimento e ir para
a cama descansar, pois amanhã será um longo e cansativo dia. Porém, lembro que
eu sou eu e que nunca teria coragem para tal. Você leitor também não teria. A
gente diz que teria, mas na hora dá para trás. Óbvio que é a melhor opção. Mas
não é uma opção. Enfiar uma estaca no peito do bicho e dormir como se nada
tivesse acontecido não está nos planos. Lembro do recente caso em que minha
cadela estava no último estágio de um câncer que iniciou nas mamas e em questão
de dias se espalhou para os pulmões. Ela foi levada ao veterinário já com a
possibilidade da eutanásia na mesa, mas o próprio doutor via o processo com
resistência. Talvez pelo mesmo pensamento que me corrói agora: Sou contra
porque sou eu quem irá proceder. Na
verdade, este foi o principal desempate entre seguir a carreira de jornalista e
de médico veterinário. Ver bicho sofrendo pelo resto da vida não estava nos
meus planos e eu respeito profundamente a profissão muito também por essa
frieza necessária que eu, escritor, não tenho e por isso escrevo ao invés de
tentar fazer algo pelo inseto.
Já faz duas
horas desde que o bicho foi cortado pelo ventilador. Acho que vou dormir e
esperar para ver amanhã o que se sucedeu durante o restante da madrugada. Como
sempre na vida.
Pensar que
meia hora antes do acontecido eu havia cogitado seriamente ir dormir. Fecharia
a janela e nada disso teria acontecido.
Sunday, February 10, 2013
O gato
Você chega em casa cansado do trabalho. O mundo inteiro caiu
em suas costas no dia de hoje e só o que você quer é atirar a chave em qualquer
canto, se atirar no sofá e ver TV. E quando eu digo “ver TV” é ver TV. Ver
novela, ver alguma série qualquer. Você enfim deita no sofá. Decide não comer
nada, está cansado demais para sentir fome. É só ver TV e ir deitar.
Aí vem o gato.
O gato vem, pisa em cima de você, procura um lugar fofo em
seu peito magro e, quando finalmente acha, deita.
E você fica naquela posição por horas.
Está cansado, não quer mais ver TV, mas como que vai tirar o
gato dali? Além de atrapalhar o conforto do bichano, ele está lhe dando calor,
querendo ele ou não fazer isso. “Ele vai me odiar se eu sair daqui agora”.
Humanos pensam isso de gatos. Acham que vão perdê-los para sempre se decidirem
mover-se para maior conforto. Aí ficam
ali engessados. Tentam se mover bruscamente numa tentativa de passar para o
gato a responsabilidade do desconforto, mas a verdade é que o gato não está se
importando muito. O gato dorme em cima do seu nariz, se for necessário. Ele
quer é dormir. “Ele quer dormir junto de mim”, pensa você, ingênuo ser humano
lendo essa frase. Pode até ser. Mas também se não fosse essa coisa de o gato
querer ficar encostado na gente, a gente nem ia dar bola pro gato. Porque o
gato gosta do ser humano. Quer ele ali, paradinho, só com o corpo encostado no
seu. Mas aí, se o ser humano, num ato de pura brutalidade resolver trazer o
gato mais pra perto de si, aí ferrou. “Aí babaus”, como diria um amigo meu.
O bicho vai embora, você está o sufocando.
Mas isso tudo é só você pensando, enquanto permanece imóvel
no sofá para não atrapalhar a equação perfeita do conforto do gato. Você pensa pensa pensa pensa pensa e, quando
volta a si, já está passando o Corujão e a fome venceu o cansaço. Você resolve
ir na cozinha fazer um sanduíche, mas, na hora em que iria se levantar, lembra
que o gato está ali. E você não consegue tirar o gato dali. O gato é mais forte
que a fome, que o cansaço, que você, e que tudo isso junto. E aí já passou
Corujão, tá começando Telecurso 2000, você está podre de sono, mas não pode se
mover até a cama porque o gato segue lá, torturando você com todo aquele tonemaíismo.
E isso piora quando o gato é daqueles mais ariscos. Daqueles
que não costumam aceitar um colo com facilidade. Uma oportunidade de fazer
carinho num desses é como pasta de dente: Você aproveita até o final, vai
enrolando, enrolando e, se precisar, ainda corta a ponta no final para durar
mais.
É claro que, de repente, depois de cinco horas de sono no
seu peito, o gato resolve acordar e sai de cima.
Aí cabe a você ficar chorando pela ausência do gato ou correr pra cama antes que ele volte.
Aí cabe a você ficar chorando pela ausência do gato ou correr pra cama antes que ele volte.
Tuesday, February 05, 2013
Maria do Céu
O nariz arrebitado o sinal em cima da boca o timbre rouco
carinhoso manhoso e pedindo carinho o ponto. assim. de repente. Dando a. Cadência.
Céus, a cadência.
Céus, o toque nos cabelos.
Céus, a boca.
Céus, a boca.
Céus, o Brasil.
Céus, o Brasil falando francês brasileiro.
Céus, a enrugada no rosto.
Céus, a roda.
Céus, o pra lá e pra cá.
Céus, a mordida na fruta.
Céus, o aAa.
Sunday, January 20, 2013
- ...
Passou duas vezes pela mulher de cabelos negros e batom bem
vermelho. Fingiu que não viu, cara forte que tava tentando parecer. Percebeu,
ficando até que feliz, não sei, tava escuro, mas acho que sorriu, que ela
estava olhando. Meio sem entender muito bem, é verdade, mas ele não entendeu
muito bem se o que ela não tinha entendido muito bem era o que diabos essa
pessoa tá fazendo dando voltas na festa ou por que diabos ele não lhe deu oi.
Aí resolveu passar uma terceira vez. Só pra confirmar qual
do não-entendimento era o caso dela. Tentou só passar, fingir não ver que ela
estava ali do lado, não vou dar oi não vou dar oi não vou dar oi, mas quando
deu por si já tava cutucando. Cutucando.
- Bu.
- Oi?
- Passei duas vezes aqui, tu fingiu que não m...
- Eu vejo você meio que em todos os lugares que eu vou.
- A gente se viu umas quatro vezes, cinco contando a
primeira. Do jeito que tu falou ficou parecendo aquele episódio de Friends que
a Phoebe se apaixona por um cara que ia nos mesmos lugares que ela, mas no
final ela acaba descobrindo que ele escrevia pornografia pra crianças.
- Mas é meio isso mesmo.
- Tu tá apaixonada por mim?
- Não, mas acho você meio esquisito.
- Esquisito tipo Johnny Depp, tipo Woody Allen, tipo Faustão
ou tipo o meu colega, que embora tenha contado o final do Harry Potter pra
turma toda é um sujeito adorável?
- Tipo que escreve pornografia pra crianças.
- Que injustiça, tu nem me conhece. Eu escrevo pornografia
pra adolescentes, é um público muito mais legal pra isso. Criança que vê
pornografia não sabe o que tá fazendo, adolescente tem uma relação muito mais
visceral.
- ...
- !!!
- ???
- Tu já parou pra pensar que o fato de a gente se ver em
todos os lugares pode ser obra do destino?
- Destino?
- É. Acredita?
- Só quando é alguma coisa boa pra mim.
- Então, nesse caso?
- Não.
- Eu juro que sou legal. Pergunta pra qualquer um. Eu sou um
doce.
- Eu nunca disse que você não é legal.
- Mas qual o meu problema então?
- Eu nunca disse que você tinha algum problema.
- Mas então por que essa indiferença toda?
- Nunca ocorreu a você que talvez eu só não esteja
interessada? Que “não ter problema” não necessariamente significa uma pessoa
interessante?
- Mas eu sou interessante. Tu que não me deixa mostrar isso.
- Você repete isso “eu sou interessante” desde a primeira
vez que a gente conversou. Não acha meio pretensioso pra uma pessoa de um metro
e setenta, com no máximo cinquenta e cinco quilos e que não sabe nem dançar?
- Não. Se eu não me achar interessante, quem que vai achar?
Com toda a minha autoestima já tem mulher que me vê como um boneco Ken daqueles
que não têm pênis.
- Vai ver você dá atenção demais.
- Tá, essa conversa está virando um diálogo adolescente e eu
acho que o cara que tá escrevendo vai parar de escrever a nossa história se
continuar assim.
- Tem um cara escrevendo a “nossa história”? Depois você
ainda acha estranho eu te achar esquisito ao invés de estar apaixonada.
- Nunca ouviu falar em Deus? Brincadeira.
- ...
- !!!
-???
- Aquilo de um cara estar escrevendo esse diálogo foi
brincadeira também.
...
...
Tuesday, January 15, 2013
Os alquimistas estão chegando
Um cara está aprendendo a cozinhar e vai à casa da namorada
mostrar-lhe isso.
Não.
Um cara está aprendendo a cozinhar e vai à casa da avó
mostrar-lhe isso. Com a namorada. Já que criei a criatura não dá pra deixa-la
solta assim no universo.
“Só consigo cozinhar escutando música”, fala o cara enquanto
coloca o celular no aleatório. Começa a tocar uma música do Jorge Ben. Sei lá,
leitor, escolhe aí qualquer uma pra fazer fundo, não vou impor nada. Ele tira a
camisa, coloca o avental com os dizeres “sou a melhor vovó do mundo” e parte
para cima do frango para cortá-lo. A namorada vai para a sala ver Estrelas com
a avó. Sim, o almoço saiu tarde.
Após alguns minutos de silêncio, a avó resolve virar para a
namorada.
- Você gosta muito do meu neto, não é?
- S-s-sim, responde a namorada.
- E ele gosta muito de você também, pressuponho...
- É... eu espero que sim. Do jeito dele, mas nesse tempo
todo eu já aprendi a ler ele e acho que sou importante.
- Quanto tempo é esse tempo?
- Cinco anos.
- Hm. Escuta, eu estou morrendo e não tenho coragem de
contar para ele, ainda mais agora que ele está tão entusiasmado em cozinhar para
mim. Você acha que pode fazer isso por mim?
- O-o-o que?
- Estava sentido algumas dores e fiz alguns exames. Contei
para ele que era apenas um mal jeito nas costas, mas a verdade é que estou
morrendo. Até peço desculpas por te colocar nessa situação, a minha ideia era
pedir para a minha filha contar para ele, mas acho que não vai haver tempo,
então como já estamos os três aqui...
- Mas eu não posso
fazer isso! Quem sou eu para dar uma notícia dessas? A senhora tem certeza
disso? Já pediu outra opinião?
- Minha filha, quando a gente é velho, sabe quando vai
morrer. Fiz os exames apenas para que ele não desconfiasse de nada, mas a
verdade é que eu já sabia os resultados. E você é a pessoa que o acompanha há
cinco anos. Quando vocês começarem a assinalar uma opção diferente no campo “Estado
Civil” da conta da NET você vai se tornar, sem o exagero que se usa na
adolescência, a pessoa mais importante da vida dele. Se por acaso ele tiver a
chance de salvar uma pessoa de assistir ao Caldeirão do Huck será você. Essa
relação linda de vocês começa hoje, com essa notícia que você dará.
Lá da cozinha o cara segue cantando a plenos pulmões:
“ZAAAZUEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEIRAAAAAAAAAÁÁÁÁÁ
ZAAAAAZUEEEEEEEEEIRAAAAAAAA”
Tudo dando certo no Frango Xadrez, tá douradinho ali na
panela junto com os pimentões e o shoyo. Não colocou amendoim, a vó não gosta,
faz mal, ouviu dizer. Mexe isso aí, guri, diminui esse fogo aí, vai queimar
tudo, lembrou dessas coisas que ela dizia quando ele ainda tava engatinhando
nessa coisa de frango. Era um frango no frango. Falta agora só diluir o amido
de milho (que, agora sabendo cozinhar, ele compra só Maizena), colocar no todo,
misturar e servir.
Tá, ficou tudo pronto, hora de servir, a namorada bota a
mesa e a avó só esperando. Vem, vó, tá
na mesa.
Lá pelo meio do almoço, percebendo o clima pesado, o cara,
sem vocação alguma para tal, resolve tentar melhorar o ambiente puxando o
seguinte assunto:
- Que silêncio. Parece até que alguém aqui está morrendo.
Eis que a namorada e
a avó gelam, será que ele ouviu a conversa da cozinha? Até que não seria mal,
pensa a namorada. Que horror pensar assim, pensa de novo. A avó, que já estava
quase morrendo, cai durinha ali no chão da sala.
- O que está acontecendo, santo deus todo poderoso????!!!!
- Exatamente aquilo que você ouviu da cozinha! Chama a
ambulância. Rápido!
Três dias depois, enquanto o cara havia saído para almoçar,
o médico aparece e pede para falar com alguém da família. Ninguém. Só a
namorada está. O médico pensa, não pode dar a notícia para algum estranho, mas
também não pode deixar a idosa morta na UTI sem ninguém saber. Resolve
arriscar.
- Há quanto tempo vocês estão juntos?
- Cinco anos.
- Então a relação de vocês é muito estreita?
- Costumamos dizer que se ele pudesse salvar alguém de ver o
Caldeirão do Huck pro resto da vida, esse alguém seria eu.
- Ok... Nós tentamos de tudo, mas a verdade é que ela já
estava comprometida antes mesmo do que aconteceu e...
- Eu sei. Eu sei.
- Você acha que consegue contar para ele?
- Não. Mas eu tenho. É como fazer regime.
Quando o cara estava de volta do almoço, a namorada respira
fundo e senta ao seu lado. Olha em seus olhos.
- Sabia que existem pouco mais de mil exemplares do Leopardo
Persa...
- Você sabe que eu não gosto quando chamam animal de
exemplar.
- Sabia que existem pouco mais de mil indivíduos adultos do
Leopardo Persa em todo o planeta? Tão tendo que reproduzir eles em cativeiro,
porque a dizimação tá pesada. Pensando por esse lado, nem é tão ruim o fato de
que existem três mil pandas ao redor do mundo, você não acha?
- Amor, citando a Berta, em um dos seus melhores momentos em
Two and a Half Men, todo mundo sabe que depois do Herb ela é a minha personagem
predileta, você pode colocar açúcar em cocô que ainda sim não vai ser
chocolate. Tudo bem ela ter morrido.
- Não está tudo bem. A pessoa mais importante na sua vida, a
que você mais amava, acabou de falecer. Você nunca mais irá cozinhar para ela.
- Olha, eu não sei você, mas antes de aceitar participar
desse texto, eu li todos os outros do cara que está escrevendo. Em um deles,
ele diz que o universo é muito pequeno e, por conta disso, os seres magníficos,
como a minha avó, têm de respeitar uma fila, pois são grandes demais e ocupam
muito espaço. Essa fila precisava andar e a minha avó, gentilmente, cedeu o
lugar dela para uma nova pessoa ser a que eu mais amo e que mais me cuidará
daqui pra frente.
Depois de um tempo, acho que uns dez anos, quando o cara e a
namorada já assinalavam outra opção no campo “espaço civil” do contrato da NET,
Deus, O Todo Poderoso, desceu dos céus. Foi uma loucura. Pessoas se ajoelhando,
pedindo perdão pelos seus pecados, dizendo que fariam qualquer coisa para
permanecerem vivos, imaginem que coisa legal deve ser você ser Deus. Enfim, o
Supremo, quando finalmente conseguiu com um raio daqueles fazer com que toda a
humanidade calasse a boca, disse que tava cansado daquela zona toda. Tomaria
uma atitude drástica e definitiva e passaria o resto da eternidade no Rio de
Janeiro vendo as moças passarem de bicicleta. Ou os moços jogarem altinha, se
você for daqueles que acreditam que Deus é uma mulher. A atitude seria punir
toda a humanidade, fazendo com que todos os seres, fora os pandas e os
leopardos persas, fossem obrigados a assistir, por toda a eterna eternidade, ao
Caldeirão do Huck.
Todos fora um humano, escolhido via sorteio para, junto com
outra pessoa a sua escolha, passarem o resto dos tempos junto dele vendendo água-de-coco
na praia.
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